terça-feira, 2 de dezembro de 2014

LANÇAR AS REDES (SOCIAIS) EM ÁGUAS MAIS PROFUNDAS

Então o meu tio, pescador, resolveu fazer um perfil no facebook. Como ele não manjava muito dessas tecnologias, pediu minha ajuda. Enquanto eu lhe apresentava o mundo virtual, ele me dizia, entre maravilhado e temeroso, o que entendia por “navegar”, “rede” e outros termos tão comuns ao seu universo.
– Fiio, navegar só é bom quando a gente conhece bem os perigos do mar. E rede é legal, mas só para o pescador, não para os peixes.
Eu, metido a biblista, falei pra ele de um episódio onde Jesus manda Pedro lançar as redes em águas mais profundas. Ele, curioso que só, pediu para eu contar a história. Depois que terminei, ele me olhou bem sério e disse:
– Brabo de acreditar...
– Por que, tio?
– Esse Pedro sai à noite, que é mais fácil de enxergar os peixes, e não acha nada. Aí, de dia, que é quando os bichinhos ficam escondidos, eles enchem as redes. E ainda por cima em alto mar? Truco!
Confesso que nunca tinha visto a questão pelos olhos de um pescador. Sempre imaginei a cena toda de forma simbólica. Ou seja, o barco como sendo a Igreja; a noite e o mar representando os perigos do mundo; Pedro como um chefe religioso; a rede, o Evangelho; os peixes, novos adeptos da religião nascente... Mas o tio me deixou intrigado. Como os ouvintes de Jesus, muitos deles pescadores de profissão, encararam esse “deslize”? Bom, o relato é de Lucas. Talvez o seu público não tenha percebido... Mas alguém tão cuidadoso em compilar os textos não iria cometer um erro tão grosseiro. Iria? E se foi de propósito? E se houvesse um sentido mais profundo?
Talvez o autor fizesse mesmo questão de contar o sucedido de maneira “fantástica” para que as pessoas se antenassem e olhassem para além das aparências.  Ora, se Jesus é a Luz, faz todo sentido pescar durante o dia. Ir para águas mais profundas, ou para o mar aberto (“fazer-se ao largo”, dizem algumas traduções), significaria ter uma visão mais ampla e mais crítica da realidade e do mundo que nos cercam. Logo, a rede, usada à noite para capturar peixes, teria um novo sentido à luz do Sol: libertar as pessoas.
Então me lembrei que estava iniciando meu tio no mundo das redes virtuais. Fiquei impressionado com a sua perspicácia. Ele nem começou a usar o perfil e já estava intuindo a existência de armadilhas. De fato, se tem uma coisa que acaba, com o ingresso nas mídias sociais, é a privacidade. Na era dos reality shows, ansiamos por expor todos os nossos passos na internet. Atentos a isso, os patrocinadores injetam dinheiro pesado nos sites de relacionamento em troca de informações privilegiadas sobre nossos dados pessoais e tendências de consumo. Isso pra não falar nos problemas de roubo de senhas (inclusive do internet banking) e até de espionagem. Olhando por esse lado, as redes virtuais são muito perigosas.
Já ia dando razão ao meu tio quando minha esposa veio avisar que havia voltado da academia. Então pensei no outro lado da moeda: eu a conheci num site de relacionamento, e estamos juntos há dez anos. Mantenho uma lista extensa de amizades virtuais com quem debato os mais variados assuntos. As propostas de estudos, como os de hermenêutica juvenil, têm circulação inalcançável pelos métodos tradicionais de divulgação. Numa dessas listas de debates surgiu a ideia do curso bíblico virtual, que tem rendido ótimas reflexões. Escrevo para meus blogs, auxilio em outros e me divirto e aprendo muito com as postagens de outras pessoas. É liberdade total de expressão e acesso a informação: algo inimaginável nas mídias impressas e outros meios de telecomunicação. Seria isso o mesmo que lançar as redes à luz do dia?
Indo para águas mais profundas, para o mar aberto: as redes, em si, não são boas nem más; elas são uma ferramenta. E que baita ferramenta! Há pouco mais de um ano, graças a uma mobilização que se iniciou nas redes sociais, manifestantes invadiram as ruas em busca do que imaginavam ser um Brasil melhor. Se o resultado foi um sucesso ou um fracasso, deveu-se à falta de uma pauta de reivindicações comum, à falta de costume de manifestações desse porte, a uma série de fatores, enfim, que dependeram de pessoas, não do meio de comunicação. O mesmo vale para as objeções de alguns colegas sobre cursos populares EaD. Dizem que “popular” e “virtual” são antônimos, que a internet torna as relações frias, monótonas etc. e tal. Isso lembra o Concílio de Jerusalém (At 15), que discutiu a necessidade da circuncisão para os não-judeus. Lá como cá, a questão me parece ser de costumes, portanto, não-fundamental para a fé. Pessoas circuncidadas e relações presenciais podem ser tão boas ou tão más quanto pessoas incircuncisas e relações virtuais.
Em suma, redes sociais são um meio, com suas qualidades e suas
peculiaridades. Se, por um lado, há os riscos, há também os benefícios. Tudo depende do modo como as utilizamos. Ontem, por exemplo, esqueci meu twitter aberto no micro do meu tio. Faz uns dez minutos, ele me mandou uma mensagem pelo skype:
– Fiio, acho que alguém te trollei, não sei quem fui. Dá uma olhada lá! #fikadica

terça-feira, 1 de julho de 2014

O Bom Samaritano: proximidade ou aproximação?

Nas últimas postagens, falei de alguns lugares e seus significados: Chapecó - abrir os olhos; Betânia - casa dos pobres. Então, pensando nos estudos bíblicos da PJ católica romana para este ano, mas querendo dialogar também com as juventudes de outras denominações, veio-me a seguinte pergunta: E Samaria, é lugar do quê, de quem?

Os textos a seguir tentam dar uma resposta. Digo "textos" porque, excepcionalmente hoje, apresento mais de uma reflexão. Não deixam de ser experimentos literários. Portanto, fiquem à vontade para dizer qual lhes agrada mais.

Ah, sim... Ambos foram escritos a pedido. Dado o prazo para entregá-los, deixei-os com títulos provisórios. Mas agora, revisitando-os, fico pensando: A Parábola do Samaritano é uma questão de proximidade ou de aproximação?

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UMA QUESTÃO DE PROXIMIDADE
Você quer herdar o Céu? Seus problemas se acabaram! Basta amar a Deus com todas as suas forças e à próxima, ao próximo como a si mesma, a si mesmo. Quem é seu próximo? Bueno...
Tadeu é coordenador do JESSALVA (grupo de jovens Jesus Salvador). Apesar de ser da periferia, seu grupo está ligado à Catedral. Em tudo o que fazem, procuram glorificar a Deus. Por conta disso, Tadeu não fala mais com o seu amigo Gerson. Além de umbandista, o guri é negro. E o pior... acabou de se assumir homossexual.
A moto é que garante o sustento de Tadeu. Ele é motoboy. Durante uma entrega, o acidente. O motorista da Van fugiu do local. Sua moto ficou destruída. Quem aparece para ajudar? O Gerson. Ele, que trabalha nas ruas, estava por perto bem naquela hora. Ficou com o amigo até a ambulância chegar.
No hospital, Tadeu liga para a mãe. O celular está desligado. Então liga para o padre. É noite de confissões, não pode se liberar tão cedo. O jovem passa a noite em claro, ninguém aparece. Como estará sua moto? Pela manhã, uma visita: é Gerson. Levou a moto na oficina do japonês, vai ficar pronta em um mês. Como agradecer?
Se fosse um sábado à noite, e o Gerson fosse o acidentado, Tadeu teria deixado o grupo de lado para ajudar o amigo? Pela responsabilidade de coordenador, ele sabe que não. Isso o incomoda! Na última reunião, discutiram justamente sobre a parábola do bom samaritano. Quem é o meu próximo? Falaram de um mendigo caído, alguém sem um rosto concreto! Como ajudá-lo? Levando-o para a Igreja! Como se todos os problemas da humanidade derivassem da falta de religião. Mas agora Tadeu está num hospital, diante de um problema real, com pessoas concretas, de rostos concretos. E está muito mal por receber ajuda de quem ele nunca ajudaria. Então pensou: como me torno próximo de alguém?
É isso! Tadeu percebeu a moral da história. A gente não faz nada para ganhar uma herança. É perda de tempo – e revela grande egoísmo – tentar merecer o Céu. Independente da fé que professamos, da cor da nossa pele, da nossa orientação sexual ou da nossa condição financeira, somos todos filhas e filhos de Deus, criados para a Vida. Por isso, participar da Igreja, crer em – e temer a – Deus não é privilégio, não é condição de superioridade, não é clubinho dos eleitos. Ser cristão é serviço.
No tempo de Jesus, os entendidos da Lei se consideravam os únicos salvos. Hoje também há o costume de dizer que só quem participa do meu grupinho, só quem professa Deus do meu jeito é quem vai se salvar. Logo, não adianta estender a mão a quem não tem salvação. Os samaritanos eram considerados um povo insensato (Eclo 50,25-26) porque, na invasão assíria, foram misturados a outros povos, contaminando assim o seu “sangue puro”. As “insensatas e insensatos” de hoje não esperam que as pessoas se convertam à sua fé, ou se arrependam de seus pecados, para ajudá-las. Elas não se sentem seres superiores, que vieram a esta terra para julgar os vivos e os mortos. Elas vão ao encontro dos outros, elas se tornam próximas dos necessitados para estender a mão a eles. Diante do sistema, não perguntam por que vivem os maus e morrem os bons. São insensatos demais para julgar quem merece viver ou morrer. Em vez disso, limitam-se a perguntar por que existe a morte. Em sua insensatez, entendem que a Vida é para todas e para todos.
Então, nesse jogo de aproximação, o que escolhemos? Decidir quem é o nosso próximo, isto é, quem merece nossa ajuda, nosso amor? Ou decidimos amar indistintamente, com isso tornando-nos próximas, próximos – e colocando-nos a serviço – de quem precisar?

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UMA QUESTÃO DE PROXIMIDADE II
Quem é o meu próximo (Lc 10,29)? O Doutor pergunta a Jesus, malicioso. Quer que Ele admita: só a “gente do bem” merece ser amada. De certo, não vê com bons olhos tantos pobres e estrangeiros seguindo o Nazareno. Mas este, rei da subversão, conta uma história e inverte o problema: quem é o próximo do outro, daquele que está caído à beira do caminho (Lc 10,36)?
A resposta, que o especialista da Lei custa a dar, parece simples: o samaritano. Na verdade, podia ser qualquer um, qualquer uma que estendesse a mão ao necessitado. Mas por que justo um samaritano? E mais... A Tradição o acusa de ser bom. Por quê? Samaritanos normalmente são maus? Talvez sim... Recuando alguns versículos (Lc 9,51-56), vemos Jesus rejeitado na Samaria apenas por dizer que estava a caminho de Jerusalém. Em Eclo 50,25-26, por outro lado, um judeu chama os samaritanos de estúpidos. Por que tanta rivalidade?
Logo depois da morte do rei Salomão (931 a.C.), Israel se separou em reino do sul (Judá) e reino do norte (Israel). Poucos séculos depois (721 a.C.), a Assíria dominou este último, repovoando-o, misturando a população local a grupos oriundos de outros lugares. Na visão dos irmãos sulistas, a miscigenação inter-racial tornou os nortistas impuros, impedindo-os de continuar pertencendo à “raça dos eleitos” e desfrutar a Terra Prometida. Algo semelhante aconteceu com Judá, pouco depois, sob o domínio babilônio, mas... voltemos à parábola.
O cenário escolhido por Jesus é algum lugar entre Jerusalém e Jericó, ambas cidades da Judeia. Isso explica a origem do assaltado, do sacerdote, do levita e até do dono da pensão, todos obviamente judeus. Mas... o que faz um samaritano ali? Bom, ele é o outro. A Samaria é o lugar do outro, do estrangeiro. Lucas, vale lembrar, escreve em um ambiente fora da Palestina. Seu público são comunidades cristãs em cidades dominadas pela cultura grega. Nelas havia também cristãos vindos do judaísmo, que se julgavam superiores aos demais. Falando de um samaritano, Lucas espera que eles entendam: não se trata se ser melhor ou pior; eles podem até ser os primeiros em relação às promessas de Javé, mas os “fora-da-Lei” (não-judeus) demonstram mais liberdade para amar, pois não estão nem um pouco preocupados com questões de pureza (de fato, segundo a lei judaica, acudir um homem caído era correr o risco de tocar em um leproso ou outro tipo de pecador que poderia tornar seu socorrista também uma pessoa impura). Os judeus podem ser “gente do bem”, etc. e tal, mas é em seu território que o ato de violência acontece. Quem demonstra misericórdia é um estrangeiro...
Para lembrar que todos são iguais, o texto começa, inclusive, falando em uma herança. A primeira pergunta do especialista da Lei é como fazer para herdar a vida eterna (Lc 10,25). Ora, ninguém ganha uma herança por mérito. O pai a oferece gratuitamente, tanto aos filhos mais velhos (judeus) quanto aos mais novos (helenos). Nada deve ser feito pensando na recompensa, pois isso já não seria amor. Ajudar somente aos semelhantes demonstra egoísmo e corporativismo. Porém, aproximar-se (isto é, ser o próximo) até de quem nada tem a oferecer, com o desejo único de servir, isso sim é amor.
Por fim, pensemos em nossos dias. Quem são as samaritanas e samaritanos de hoje? Quem são as impuras e impuros que enxergamos com maus olhos? Os irmãos ateus, ou de outras denominações ou religiões? As pessoas cuja orientação sexual diverge da nossa? Bêbados, mendigos, presidiários e prostitutas? Jovens, mulheres, negros, índios? Desempregados, roceiros, operários? Argentinos, uruguaios, angolanos, libaneses? Nordestinos, paulistas, cariocas? É possível esperar algo de bom deles? É possível amá-los? O que falta para isso? Talvez, como o especialista da Lei, estejamos esperando o próximo tomar a iniciativa: “ah, esse aí bebe porque é vagabundo!”; “aquele lá só não trabalha porque não quer!”; “bolsa-família, cotas, vale-reclusão... e tão reclamando de quê?” Enquanto isso, quem está sendo a próxima, o próximo da nossa gente?

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Pobres (e Copas da FIFA) sempre tereis

Amanhã começa a tão falada Copa da FIFA. Embora não a reconheça como torneio mundial, não é bem disso que pretendo falar. O que tem me irritado é o cansativo refrão dos que teimam em fazer alarde sobre os gastos com a construção dos estádios. O que há de legítimo em tamanha preocupação com o dinheiro público?
Pouco antes da condenação e crucifixão, Jesus passa por uma situação onde – segundo três do quatro evangelhos – é criticado por seus próprios discípulos. A narrativa, comum e, ao mesmo tempo, muito particular a cada um dos quatro evangelistas, está em Mt 26,6-13; Mc 14,3-9; Lc 7,36-50; Jo 12,1-8. Uma mulher (anônima, dizem os sinóticos; pecadora, segundo Lucas; Maria, irmã de Lázaro e Marta, afirma João) unge a cabeça (ou os pés?) do Nazareno com um óleo caríssimo (nardo, perfume ou mirra?). Alguém (sejam os discípulos, o anfitrião, ou mais especificamente Judas Iscariotes) condena a atitude da mulher mas, principalmente, a conivência do Mestre. Exceto Lucas, a queixa é a mesma: daria para construir hospitais... digo... daria para transformar esse óleo em dinheiro – muito dinheiro – e doá-lo aos pobres. Hum... Acusação similar à de um certo refrãozinho, não!?
Num primeiro momento, a resposta de Jesus parece de um conformismo extremamente oposto ao que vinha pregando até então: “Os pobres sempre estão (estiveram e estarão) com vocês!” Por um lado, somos levadas e levados a crer que não importa o que façamos para melhorar as coisas: sempre haverá pobres em nosso meio. Mas, por outro lado – e aí é necessário pôr em prática o senso crítico para se chegar a esta conclusão – a frase enigmática do Messias pode estar a nos provocar: os pobres sempre estiveram aí, e vocês nada fizeram por eles; por que, agora, tamanha preocupação?
Paremos pra pensar em quem mais repete este refrão. Não é a oposição ao governo que está aí? E essa mesma oposição não era governo até outro dia? Essa mesma oposição não esteve anos e anos no poder? O que fizeram pelos pobres? Onde estão os hospitais e escolas que eles construíram? João, que põe a queixa contra Jesus e a mulher na boca de Judas Iscariotes, é quem melhor explica o real motivo para tanto alarde. Segundo ele, Judas era o chefe do Congresso... digo... o responsável pela bolsa comum. Com a venda do óleo, o dinheiro depositado nela poderia ser embolsado facilmente. Entendido por que tanto chororô?
Ok, sejamos francos: a construção dos estádios não tem uma função tão nobre quanto a do óleo (seja lá qual tenha sido) que ungiu Jesus. Dilma e Lula, aliás, estão longe de ser o Messias. Mas vamos procurar entender por que a oposição está fazendo tanto barulho em relação a isso. E vamos procurar pautar a crítica sobre esse megaevento pela ótica popular. É nossa missão, como anfitriões, perguntar o que essa Copa vai nos trazer e o que vai levar de nós. Alguém aí já assistiu O Banheiro do Papa? A história é interessante (clique aqui para ver o filme). Uma cidade uruguaia muito pobre, fazendo fronteira com o Brasil, prepara-se para receber a visita do Papa. A expectativa é muito grande, principalmente porque, atrás dele, virá uma multidão de brasileiros. Os uruguaios veem uma oportunidade de fazer dinheiro com o acontecimento. O protagonista, um homem muito humilde, resolve construir um banheiro. Espera alugá-lo para os romeiros. Gasta as parcas economias da família no investimento. Chegado o grande momento, a visita dura poucos instantes, ninguém lucra nada e, quando estão indo embora, os brasileiros ainda deixam atrás de si uma grande desordem e sujeira. Aos nativos resta limpar a bagunça. Para este senhor, pai de família, a situação é ainda pior, pois gastou o que não tinha e não obteve nenhum retorno. Será que não estamos indo para o mesmo caminho? Há pouco tempo, uma camiseta publicitária sugeria facilidades para o turismo sexual em nosso país. De que forma podemos nos precaver do turismo predatório? Os nossos pobres estão sendo despejados para “embelezar” as áreas por onde deverão passar os turistas e delegações. Como garantir que sejam devida e dignamente realocados? Há centenas de pessoas voluntárias trabalhando em função da Copa. Será que não se faz necessário também um voluntariado para combater, entre outros, o ambiente facilitado para o tráfico humano? A FIFA escolheu o tatu-bola como mascote da Copa 2014. Você sabia que ele é um animal com risco de extinção? Que tal solicitarmos à FIFA que aproveite o ensejo para motivar uma campanha de preservação da espécie? Essas são só algumas questões. Ao ler estas linhas, tenho certeza de que você poderá enriquecer a lista com preocupações e precauções. Mas o principal é nos perguntarmos: como combater a prática exploratória externa (a entidade FIFA e tudo o que vem junto com ela) e interna (caso dos nossos Judas Iscariotes) que oprimem e empobrecem ainda mais o nosso povo?
É disso que se trata, afinal. Como vimos, os textos bíblicos não concordam em praticamente nada. Nem em quem eram os anfitriões. No texto de João, são os irmãos Maria, Marta e Lázaro. Em Marcos e Mateus, é um tal de Simão, o leproso. Só para constar, leproso é também o significado do nome Lázaro. Mas Lucas, para garantir definitivamente o nó na nossa cabeça, nada fala sobre a doença e diz que esse Simão é um fariseu. Entretanto, apesar de tantas divergências, num ponto todos concordam: Jesus estava em Betânia, que significa “Casa dos Pobres”. Que lugar interessante para afirmar que os pobres sempre estarão conosco. É como se Ele dissesse: Só agora vocês repararam que os pobres existem? Vocês querem hospitais e escolas para eles; mas já se perguntaram o que eles querem? Vocês costumam frequentar Betânia, isto é, a casa dos pobres? Vocês conhecem a realidade dessa gente? Ou seja, quando Cristo diz que os pobres estão em nosso meio, Ele também quer perguntar: E vocês? Estão com (a FIFA ou com) os pobres?

segunda-feira, 19 de maio de 2014

FUI, VIRAM, VENCEMOS!

“Nunca se ouviu falar de ninguém que tenha
aberto os olhos de alguém que nasceu cego.
Se esse homem não viesse de Deus,
não poderia fazer nada.”
(Jo 9,22-23)

Ao passar Jesus, alguma coisa sempre acontece. O coxo anda, a surda ouve, a muda fala, o cego vê. Há tempos queria falar aos adultos sobre os jovens. Finalmente, veio Chapecó/SC e a oportunidade. Lá, descobri que a sede juvenil de entender a palavra não é menor que o desejo adulto de compreender o fenômeno juventude.

Jesus vê aquele que era cego de nascimento, segundo nos diz João, cap. 9. Parece óbvio. O contrário é que não poderia ser, não é!? O que chama a atenção, porém, é a suspeita de que essa pessoa, habituada a conviver com a cegueira desde o nascimento, não percebia isso como uma deficiência. O mesmo se dava com os participantes, que interpretaram os jovens como sendo o cego do texto, necessitando, portanto, serem “auxiliados” (guiados, na verdade) pelos adultos. Pobres vítimas do adultocentrismo! Programadas e programados, desde o nascimento, para manter o bom e velho sistema patriarcal, comandado não mais pelos chefes de família, mas igualmente dominado por uma elite masculina, branca e poderosa. Que belo susto tomaram quando perceberam como, sem querer, querendo, seu discurso estava impregnado do desejo, não de animar, mas controlar o protagonismo juvenil.

Isso faz deles pessoas ruins? Não, obviamente! Temos a cultura de culpar as vítimas. Ora, essas são cegas desde o nascimento. Quem são os culpados, então? Seus pais? Vítimas, igualmente! Vítimas à espera de manifestação divina, de um sinal dos céus, única esperança que lhes resta, muitas vezes. Gente que não se apega mais à Lei, mas espera na Justiça. Esperança de que os verdadeiros culpados de sua cegueira sejam destronados. Sofrem o peso de uma cultura opressora. Sofrem caladas e calados. São marcados na alma. Reproduzem o discurso, pois é a única coisa que entendem, é o único mundo que conheceram, enfim.

É tanta sujeira! Para ver melhor, a gente precisa se lavar. Mais que isso: é preciso renascer. Do barro viemos; o barro restaura a visão. A vida é recriada. Aperta-se uma tecla; reboot iniciado. Jesus, luz do mundo (faz sentido! Como enxergar no escuro?), faz o lodo, dizendo com isso que precisamos entender qual o sentido da criação. Principalmente, precisamos entender que não somos deusas e deuses; somos criatura. Não temos o poder sobre todas as coisas e, se algo dominamos, é por mera concessão divina. O relato da criação deixa claro que nosso papel é cuidar do jardim. Não somos os donos do campinho. Não somos os donos das nossas filhas e filhos. Da mesma forma, não deveríamos ser propriedade de ninguém. Se isso acontece, algo está errado. É preciso iluminar o caminho. Nada como a água para tirar a sujeira que nos impede de ver.
Não é à toa que a água é a matéria do batismo. Lavar-se, enxergar, é comprometer-se, mudar a postura, mudar de atitude. Isso incomoda quem está à nossa volta: “Você, um adulto, falando mal dos adultos?” Não, não estou falando mal dos adultos; estou falando que o modo como tratamos os jovens é errado. “Mas até outro dia era tu que falava mal deles!” Mas agora vejo as coisas de um modo diferente. “Ora, não me venha pregar moral de cueca!” Mudar incomoda quem está por perto, pois obriga as pessoas a repensarem suas opiniões. Ninguém gosta de ser confrontada, confrontado. Nem todos têm coragem de renascer...

Por que é preciso coragem? Ora, porque o questionamento sempre leva à origem de todos os males: o centro do Poder. Imagine que você tem uma longa caminhada na comunidade. Todo mundo te conhece, conhece teus filhos. Alguém te encontra no trabalho, numa festa, numa rua qualquer e te reconhece como aquela, aquele que toca nas missas de sábado à noite. De repente, vem um cidadão e começa a questionar os hinos da Igreja, que há mais de 20 anos são os mesmos. Como você se sentiria? Bom, o fato é que esse cara tem razão: são sempre as mesmas músicas, desde que você começou a tocar. O que fazer? Seja sincera, seja sincero ao responder. Vou dizer o que acontece normalmente: as pessoas usam o poder que o longo tempo de permanência no posto lhes confere para, mesmo reconhecendo que o outro tem razão, fazer com que toda a comunidade ignore-o. E, se o sujeito insistir, moverá céus e terras para bani-lo do convívio do grupo. Não confiamos no que não podemos controlar. Por isso, não confiamos nos jovens. Por isso, a grande mídia procura desmoralizar quem questiona a autoridade da elite dominante. Não gostamos de ser controlados, mas procuramos controlar o que nos cerca. É nossa cultura! É útil aos governantes, pois nos mantém divididos. Quando alguém percebe isso, e passa a questionar o opressor, corre o risco de ser silenciada, ser silenciado.

Onde buscar coragem para enfrentar os riscos? Nossa mentalidade de adulto manda recorrer à família. A mãe e o pai do cego do texto, com medo dos fariseus, entregaram o filho à própria sorte. Às vezes, a família é a primeira prisão do jovem: “Estuda primeiro, meu filho! Para de ficar sonhando acordado! Não te envolve em política...” Quando ele ou ela demonstra que não cabe na caixinha que seu pai e sua mãe lhe prepararam, fica desamparado: “Quando te falei, não me obedeceu, né!? Agora é por tua conta! Engole esse choro!” Nestas condições, é normal ficar desorientado. Mas é quando precisa de suas asas que normalmente o jovem se supera. Sua ousadia surpreende e desarma o adulto. A reação é instantânea: “Ou tu te molda à estrutura, ou tá fora!” Ser desafiado a voar... e pelas próprias asas! Quantos pais, quantas mães têm medo de ver seus rebentos caírem? Quantos adultos têm medo de não serem mais úteis? Mas tem aquela parcela mal intencionada... Seu medo é que isso – o voo – dê certo! Quem é capaz de voar só para se for abatida, abatido. Aves solitárias voam muito alto para ficar protegidas. Não é o caso dos jovens. Sua natureza é totalmente social, grupal. Eles voam em grupos. Isso lhes dá força, isso lhes dá coragem. Imagino que, enquanto dançava o “guli, guli”, o povo de Chapecó tenha percebido isso. Em vez de querer que sejam águias, fortes mas solitárias, é preciso aprender a voar com os jovens.

Voar em grupo e fora da estrutura... Isso é liberdade! Os fariseus expulsam o que tinha sido cego do Templo. Enquanto o longo debate ocorreu dentro da instituição, onde esteve Jesus? Ninguém o viu! Ninguém o conhecia direito, nem mesmo o curado da cegueira, que o considerava um profeta. Quando é que ele e Jesus voltam a se encontrar? Fora do Templo, fora da estrutura, fora do sistema. É nesse momento que o neovidente o reconhece como o Messias, o Filho do Homem. É como se ele fosse adquirindo a visão aos poucos. Ou seja: Para ver, basta querer! Mas não acontece de uma hora para outra. É processo... Os adultos de Chapecó levaram um final e semana inteirinho para perceber suas limitações. E não vamos dizer que saíram doutores em juventude. Mas uma coisa elas e eles aprenderam: Só vamos enxergar, de fato, quando rompermos definitivamente com esse sistema que está aí. O primeiro passo? Desconstruir nosso discurso impregnado de ideais patriarcalistas. Como? Não esperar que os jovens abracem nosso modelo de comunidade, mas ir ao encontro deles, estar com eles, caminhar com eles, ouvi-los antes de sermos ouvidos.

Quem disser o contrário, estará sendo como os fariseus. Eles se julgavam superiores quando disseram àquele que foi curado: “Tu vives todo em pecado e quer nos ensinar!” Eles perceberam desde o início que só um enviado de Deus poderia curar a cegueira do povo. Mas não podiam colocá-lo num sacrário, não tinham como controlá-lo. Então, apegaram-se à Lei, à proibição de curar no sábado. Ora, Jesus mostra que o sábado foi feito para nos lembrarmos de continuar a obra da criação. Não há outro sentido para o descanso de Deus. Os fariseus bem o sabem, mas assumi-lo é abrir mão do Poder que exercem sobre o povo, condição que lhes é mais sagrada que o próprio sagrado. Por isso, são os piores cegos. Sua postura não é de não saber; é de não querer.
Como adultos, temos duas opções: Ou manter o discurso controlador, ou abrir-se ao diferente, isto é, ao modo como o jovem vê o mundo. O povo de Chapecó disse que estava saindo quebrado do encontro. Alguns disseram que estavam com pulgas atrás da orelha, que saíam do seminário com muito mais pontos de interrogação do que quando entraram. Isso é ótimo: Ver é processo! Pulga coça, incomoda, faz a gente se mexer. Estou num ônibus, quase chegando em minha cidade: São Leopoldo/RS. Tomara que minha passagem por terras catarinenses não tenha sido como a da banda do Chico Buarque, que fez todo mundo se mexer, mas, tendo passado, tudo voltou ao lugar. Tomara que minha passagem por lá seja como a de Jesus: criadora, incômoda, transformadora e um sinal do Reino definitivo. Amém!

sexta-feira, 28 de março de 2014

LIBERDADE, LIBERDADE... PARA QUÊ? PARA QUEM?

Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5,1). Todavia, decidimos que nem todos seriam livres. Coisificamos e escravizamos nossa irmã, nosso irmão, vendendo-os para o tráfico humano (Gn 37,27-28). E quando Javé perguntou onde eles estavam, respondemos soberbamente: “Acaso sou o guarda-costas de meu irmão?” (Gn 4,9).
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Mas, pela nossa ganância ou omissão, essa gente foi escravizada e condenada a trabalhos forçados, à prostituição, a ver seus órgãos vitais e suas crianças serem tratados como mercadorias, enfim, a todo tipo de exploração.
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Entretanto, o tráfico humano é mais presente e está mais perto de nós do que imaginamos. Sua raiz encontra-se nas desigualdades sociais, no acúmulo que gera a riqueza de uns e a miséria de dois terços da população mundial. Para estes, falta moradia, teto, comida, falta tudo. Quem são? Olhe pela janela! Há uma forte candidata, um forte candidato a se vender por comida bem aí na tua porta.
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Contudo, ceifamos vidas cada vez mais jovens para atender a um mercado cada vez mais exigente e voraz. Boa parcela da juventude carrega em si a vitalidade, a beleza, a volúpia, a ingenuidade e a pobreza necessárias para evitar questionamentos e satisfazer o público que procura esse “negócio”.
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Porém, em vez da liberdade, escolhemos a escravidão da idolatria. Em vez da partilha, o acúmulo; em vez do serviço, o poder; em vez da fraternidade, a exploração; em vez da solidariedade, a competição desumana; em vez do ser, o ter a qualquer custo; em vez de Javé – o Deus dos pobres –, o dinheiro.
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Mas nos libertou do quê? Paulo inicia sua carta aos gálatas dizendo que fomos libertos de um “mundo mau” (Gl 1,4). Que mundo? Ora, o mundo dos homens, pensado em formato de pirâmide. No novo mundo, porém, não há opressor nem oprimido, judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, pois todas e todos somos um só em Cristo Jesus (Gl 3,28).
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Sabemos que somos livres quando é o Espírito que conduz nossas ações. Quando nos deixamos escravizar por nossos instintos egoístas, podemos manipular a Lei, mas não o Espírito! Este sempre nos leva à caridade, que é abrir mão dos interesses próprios em favor do bem comum (Gl 5,16). Quantas cristãs, quantos cristãos se sentem salvos e se julgam superiores porque nunca faltam aos cultos e missas? No entanto, decorar o número do disque-denúncia é o máximo que podem fazer pelos “desgraçados” (literalmente, os “fora-da-graça”, aquela gente que nega a Deus e, por isso, merece[?] sofrer). Seres humanos passando fome? Isso é falta de fé! Pode ser... Mas, se a fé faz agir pela caridade (Gl 5,6), falta fé para quem mesmo?
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. E ela é um sonho possível ainda nesta terra, aqui e agora. Que tal batalharmos por um mundo onde não haja mais pobres (Dt 15,4), onde tenhamos tudo em comum (At 4,32)? É possível? Como? Quem precisa ceder? E se ninguém ceder, o que nos inspira o Espírito? Como conseguir que uns abram mão do que têm em excesso para que outros possam ter o que precisam? Por outro lado, como organizar o povo para que sobreviva? Como impedir que nossa gente seja levada pelo tráfico? As experiências bíblicas do Êxodo e do Exílio têm algo que nos ajude nesse sentido? De que forma os profetas nos ensinam a lutar? O que podemos aprender com as primeiras comunidades cristãs, presentes nos livros do 2º Testamento?

Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Pensemos, planejemos, façamos! Somos a sociedade das filhas e filhos de Deus, amém!

segunda-feira, 17 de março de 2014

Pedaletrizando

Um ninho de paragrafos

Com vários paragrafinhos

Quem os desparagrafizar

Bom pedaletrizador será

quinta-feira, 13 de março de 2014

É HORA DE TRANSFORMAR... O QUÊ?


Impulsionados pelas manifestações de 2013, os movimentos sociais têm se mobilizado para fazer de 2014 o ano da reforma política. Nada mais justo e necessário! Por isso, o grito da Semana da Cidadania, promovido pelas pastorais da juventude da ICAR: É hora de transformar o que não dá mais. Sem dúvida, um forte apelo de quem anseia por mudanças. Mas há que se perguntar: O que não dá mais? Como transformar o que nos desagrada? Transformar em quê?
Ora, transformar é ir além da forma, isto é, do que é imposto. Fazer reforma política, neste caso, é buscar algo além do que já foi tentado. Mas começar por onde? Ouvindo o rumor das ruas (uma verdadeira Torre de Babel), talvez o único consenso tenha sido a insatisfação com os nossos governantes. Coxinhas, black blocks, anonymous, comunas infiltrados, todos os grupos optaram por desqualificar as pautas alheias para legitimar as suas, muitas vezes se esquecendo até do que os levava aos mesmos espaços públicos, ou seja, quem era o inimigo comum. Esse cenário dificultou – e muito – a definição do ponto de partida.
Felizmente, passado já algum tempo, o fervor inicial dando espaço à natural acomodação, uma luz começa a surgir no fim do túnel. A onda do momento é criticar a realização da Copa no Brasil. O principal argumento é que falta saúde, educação, emprego e saneamento básico, entre outras coisas, enquanto o governo gasta milhões em estádios de futebol. A grande descoberta(?) das classes média e alta é que instaurou-se (só agora?) uma crise política em nosso país. Não por acaso, é a grande mídia que tem pautado as discussões (haja vista o espetáculo do julgamento do/s mensalão/ões). Se, por um lado, é nítida a manobra para derrubar a esquerda do poder, por outro, temos uma excelente oportunidade de debater os rumos da sociedade e do planeta.
Nesse sentido, é muito importante a iniciativa das juventudes. As grandes mudanças da nossa nação sempre tiveram os grupos juvenis no papel de protagonistas. Os primeiros a se mobilizarem quando se iniciaram as manifestações de 2013 foram os jovens e as jovens. Sinal de que os rumos da política não são assunto só de “gente grande”.
Para contribuir com as reflexões é que segue este folhetim. A iluminação bíblica – Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (Mt 5, 6) – será o nosso guia. Abrindo o Sermão da Montanha, as bem-aventuranças (Mt 5,1-12) anunciam a concretização do Reino, aqui e agora, e prometem um tempo de justiça e solidariedade, onde a terra será de todas e de todos. Nesse dia, a humanidade verá a Deus. Começando pelos nossos municípios, a atual organização política brasileira atende a essa expectativa? Existe algum sistema, no ocidente ou no oriente do planeta, que se aproxime da proposta de Mateus? E se aprofundarmos um pouco mais... Uma reestruturação que fosse apenas política daria conta de nos levar à tão sonhada “Civilização do Amor”?
Parece-me que algumas palavrinhas-chave nos apontam necessidades não contempladas pela reforma política. O direito à propriedade, seja ela material (a terra, por exemplo) ou intelectual (expressões artísticas e patentes), passa pelas reformas agrária e tributária, entre outras. Um mundo justo e solidário só será possível mediante a reforma do poder judiciário. O acesso ao divino, enquanto não houver uma reforma (e verdadeira conversão) religiosa, dependerá sempre dos “pedagiários” líderes espirituais. E tudo isso só acontecerá quando houver uma reforma cultural, pois é impossível encontrar uma só pessoa que esteja disposta a abrir mão e partilhar uma parte do que tenha acumulado, lícita ou ilicitamente, não importando o quanto se tornem escassos os bens vitais ao restante da população.
Seria, então, uma missão impossível alcançar essa “terra onde mana leite e mel” (Ex 3,8)? Não, claro que não! Ela pertence às pessoas pobres em espírito (Mt 5,3) e praticantes da justiça (Mt 5,10). Você já percebeu que há pobres com mentalidade de rico, isto é, gente que, mesmo vivendo na mais completa miséria, preza pelo acúmulo de bens, não importa de que modo o consiga? Mateus apresenta Jesus no alto da montanha, indicando que Ele é o novo Moisés. Pois bem! Na travessia do deserto, os hebreus aprendem a partilhar o pão (Ex 16,16-21). Tendo somente cinco pães e dois peixinhos, Jesus ensina algo semelhante (Mt 14,13-21 – note que, segundo o v. 15, o cenário é o mesmo do Êxodo, isto é, deserto). Isso é ser pobre em espírito. Isso é fazer justiça. Mas perceba que não basta ser justo; é preciso cultivar uma cultura de justiça (v. 16 – “deem-lhes vocês mesmos de comer”). Ou seja, viver o Evangelho não é somente dividir os bens materiais, mas despertar na outra, no outro uma nova atitude, uma prática equivalente à de Jesus (Mt 5,48 – “sejam perfeitas e perfeitos como o Pai Celeste é perfeito”).
Finalizando, resta o apelo de Paulo, dirigido aos romanos (e romanas?), mas igualmente válido para nossos dias: “Não se conformem com este mundo, mas transformem-se, renovando suas mentes, a fim de poderem discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (essa iluminação bíblica, aliás, não seria uma boa resposta para o que se deve transformar?). Não basta exigirmos políticos melhores se não formos pessoas perfeitas como o Pai. É hipocrisia falar de injustiça quando nossa prática é injusta. Busquemos, sim, uma reforma política. Mas que ela seja centrada na busca de um novo modelo de sociedade, inclusivo, solidário, justo e humano. Só assim saciaremos (lembram-se: deem-lhes vocês mesmos de comer?) aquelas e aqueles que têm fome e sede de justiça.


quarta-feira, 5 de março de 2014

Artigo Vozes: JUVENTUDES E MEIO URBANO

O que ora segue foi meu primeiro artigo publicado sobre Bíblia e Juventudes. O ensaio consta na Revista Estudos Bíblicos nº 103, terceiro trimestre de 2009.
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“Se a Juventude viesse a faltar, o rosto de Deus iria mudar...”
(Música: “O Rosto de Deus”, de Jorge Trevisol)

Por: José Luiz Possato Junior
e Barbara Virginia Lucas

 “Um dia resolvi desenhar uma cidade. Mais... Tentei personificá-la. Pensei nela como um todo. Dei-lhe um corpo. Imaginei seus contornos, sua voz, seu estilo, suas habilidades e competências. Para não faltar com a realidade, olhei mais de perto. Vi seus movimentos, suas cores e seu ritmo acelerado. Quis, por fim, desenhar-lhe um rosto. Que dificuldade... Precisei olhar mais de perto. E então vi uma senhora com o rosto pintado de jovem. E pensei... É este o rosto da cidade onde eu moro.”[1]

No mundo controlado pelos adultos, o “rosto que vende” é o dos jovens. Quando se olha para as cidades, parece que estamos diante de um palco, onde tudo nos bastidores é dirigido por adultos, mas os artistas, aqueles que representam, que dão rosto e expressividade, aquelas que traduzem em falas e movimentos as ideias da escritora e do diretor, são as/os jovens.

É só olhar a arquitetura e tudo o que estiver relacionado ao urbanismo contemporâneo. Há um conceito futurista no ar. Tudo parece ir ao encontro do que as/os jovens pensam, procuram, usam, curtem, enfim: tudo o que consomem. Mas será assim mesmo, ou só se está à procura da jovialidade, do que há tempos homens e mulheres intentam encontrar, a saber: a Fonte da Juventude Eterna?

A promessa de ser sempre jovem traz incluso no pacote o ser para sempre bonito, charmosa, atraente, forte, viril, ágil, livre, despreocupado/a etc. Numa palavra: Infalível. Mas será que as pessoas jovens de fato se aproveitam dessas vantagens, ou têm outras preocupações, outras realidades, outras aspirações? Estariam os adultos preocupados com o que sentem e o que pensam os jovens? E estariam os jovens engajados em satisfazer suas próprias necessidades, ou aquelas que os adultos lhes impõem? Em que as cidades contribuem para essas realizações? É possível que a Bíblia ilumine também essas situações? É sobre isso – e muito mais – que passaremos a discorrer agora.

Juventude(s): Mero conceito?

Seria a Juventude uma condição biológica? Afirma a ONU que jovem é quem tem entre 15 e 24 anos de idade. Ou será uma construção social? Vão dizer os especialistas[2] que sim. E isso por quê? Durante a Revolução Industrial (séc. XVIII e XIX), o mundo todo muda. A burguesia ascende ao poder, ganhando o que Marx chamou de luta de classes. A economia, antes essencialmente rural, começa a se concentrar nas cidades, o que provoca o êxodo massivo das famílias para os centros urbanos. A família patriarcal, feudal, cede lugar à família nuclear. Um número maior de jovens agora tem acesso aos estudos. Surgem grupos juvenis organizados e articulados. A própria palavra “Juventude” só passa a ser empregada nessa época, referindo-se justamente a esses grupos. Sendo assim, concluímos que o termo, além de recente, é próprio da/o jovem urbana/o – repetimos – enquanto grupo organizado e articulado.

Óbvio que hoje temos a juventude de periferia, do morro, da favela, a juventude rural, quilombola, indígena etc. Esses grupos não pertencem àquela juventude burguesa dos séculos anteriores; suas lutas têm motivações bem diferentes. Mas podemos considerá-los juventude porque também estão organizados e articulados. O mesmo acontece com as “tribos” de grafiteiros, do hip-hop, punks, emos, étnicas, feministas, juventudes partidárias, torcidas organizadas etc. Por isso, falamos sobre Juventudes, no plural. E olhem só... Não é esse também um traço urbano: a diversidade?

Enfim, Juventudes e Meio Urbano

Voltemos à senhora com rosto pintado de jovem. Que traços das juventudes podemos ver em nossas cidades? Pra começar, elas traduzem a alegria, a festa, o paisagismo contemporâneo, as luzes, a moda, o colorido da cidade. Traduzem também a energia necessária para superar os desafios, as preocupações, as rugas. Aliás, elas traduzem ainda os sonhos de eternidade.

A visão contemporânea de mundo é futurista. Isso podemos perceber pela arquitetura, pelas artes, pelo cinema, shoppings, pela tecnologia etc. Sendo assim, quem melhor do que as juventudes, consideradas o futuro da nação, para serem “garota-propaganda” dos tempos atuais? Mas só propaganda! Nada de protagonismos...

Nenhum outro segmento é mais elogiado, retratado e perseguido pelos meios de comunicação de massa do que a juventude. Bom... Nem todo tipo de juventude, na verdade. Têm indiscutível preferência as/os jovens que são ideais de beleza, dinamismo, astúcia, aventura, humor, ação, velocidade, flexibilidade, paixão, fúria, enfim... As mocinhas e os galãs de Hollywood. Outro grupo preferido é aquele que, em tempos de constante mudança, tem o pique necessário para acompanhar o progresso. Ninguém é melhor do que esse grupo para dominar a tecnologia virtual (internet, celulares, MP5, ipod, iphone, playstation 2, wireless etc.).

Em geral, a juventude é tão ágil, esperta, sedutora, indomável, que muitos a chamam de “espírito de liberdade”. Lindo título, mas nada mais contraditório do que um espírito de liberdade aprisionado. Enquanto grupos adultocêntricos determinam que tipo de liberdade querem para as/os jovens, mantêm as características próprias – e indesejáveis – das juventudes (a saber: espírito revolucionário, questionador, aberto à novidade) sob controle.

Por outro lado, há quem chame a juventude por outros nomes. Nas missões de “paz”, ela é o pelotão de frente, a primeira a “morrer pela pátria”. No tráfico de drogas, ou ela é usuária, ou traficante. No jogo do poder, ela é ingênua demais para assumir cargos importantes; mas é útil como massa de manobra. No trânsito, parece até que só ela é imprudente. Trabalho??? Só na Igreja e demais instituições onde seja necessário alguém para carregar bancos. Obviamente, sem remuneração. Para os demais cargos, seja em que instituição for, não há vagas. Isso porque dizem que ela é desprovida de experiência.

Diante desse quadro, arriscamos dizer que há um desejo de apropriação muito forte dos aspectos juvenis geradores de força e poder, mas ao mesmo tempo um medo muito grande de que os jovens descubram ter esse poder. Afinal, a juventude privilegiada continua sendo burguesa, bonita, saudável, exemplar... Exemplar? Isso mesmo!!! Os jovens da TV são exemplos de comportamento, ou seja: absolutamente dóceis ao comando dos adultos e controlados pelos pais, professores e superiores hierárquicos.

Quem sai desse padrão, é facilmente transformado em irresponsável, delinquente, marginal. Uma turma de jovens brancos, parados numa esquina, bem vestidos, não transmite nenhuma insegurança à população. Agora, basta dois jovens negros, com roupa de motoqueiro (provavelmente trabalhando), parados, conversando, para que a vizinha da frente ligue imediatamente para a vizinha do outro lado da rua e comunique a “atividade suspeita”.

Em casa, o filho resolve torcer para um time diferente daquele preferido pelo pai, ou a filha resolve seguir uma carreira que não foi planejada pela mãe. Qual a atitude da maioria dos pais? Muitas pessoas têm que fazer terapia para se livrar da “culpa” de ter decepcionado os pais, quando na verdade estavam procurando seu próprio caminho.

Se em casa, com uma carga emocional muito forte, a relação entre adultos e jovens já é tensa, o que dizer das relações sociais onde o adulto não tem vínculo afetivo com o jovem? É o chefe que orienta a estagiária, o sargento que manda no soldado, a professora que educa o aluno etc. Quem está sempre em condição inferior?

Há um padrão a ser seguido! Como bem lembrava Renato Russo, vocalista de uma banda de rock muito querida pelas/os jovens da década de 80, há uma pergunta a ser respondida: “O que você vai ser quando você crescer?” Ninguém quer saber da/o jovem o que ela/e é agora!

O/a leitor/a pode dizer que estamos falando o óbvio; e estamos! Mas vejamos alguns dados:

“Pesquisa recentemente divulgada pela Unesco no Brasil mostra que em 2002 a taxa de homicídios na população jovem foi de 54,5 para cada 100 mil, contra 21,7 para o restante da população. E o que é mais grave: enquanto as taxas referentes ao resto da população tem se mantido relativamente estáveis desde 1980, no segmento juvenil pulou de 30 naquele ano para os 54,5 de hoje”.[3]

Haverá alguma ligação entre esses números e as obviedades às quais estamos nos referindo?

Aliás, os jovens, em especial os mais pobres, estão associados à violência, segundo o veredito popular. Hollywood mostra isso muito bem, em seus filmes de gangues. O congresso brasileiro também, na medida em que está prestes a reduzir a maioridade penal, de 18 para 16 anos, no intuito de diminuir a criminalidade no país. Não é isso o mesmo que dizer que a culpa da violência é dos jovens?

Mas será que essa violência é gratuita, uma iniciativa dos próprios jovens, ou serve aos interesses de alguém? Haveria algum grupo manipulando a massa juvenil para que se mantenha em “pé-de-guerra”? Afinal, muitos dos atos são em grupo, entre facções, entre torcidas organizadas, entre grupos rivais, alguns armados de paus e pedras, outros possuindo uma verdadeira artilharia pesada. Seriam os próprios jovens os patrocinadores dessa violência, desse armamento, dessa verdadeira guerrilha urbana?

Alguns dirão que o verdadeiro vilão, o causador disso tudo, é a droga. Mas quem é essa tal de droga? Alguém aí já apertou a mão dela, já conversou pessoalmente com ela? Como ela vai parar na mão do traficante? Por que a fiscalização, a investigação, o trabalho de inteligência e segurança e todos os mecanismos de combate à droga são tão ineficazes? Estaria alguém fazendo vistas grossas para o trânsito dessa mercadoria? A troco de quê?

Diante disso, é preciso perguntar: É da índole jovem o ser violenta/o? Ou então: A violência é exclusividade dos jovens? Provocados a responder, diremos que não! Mas então por que a maioria dos presos é jovem? E por que a maioria dos jovens presos é de afro-descendentes? E por que a quase totalidade dos presos é pobre?

As outras duas grandes preocupações dos jovens (além da violência) são a sexualidade e o trabalho. Mães solteiras, HIV-AIDS, camisinha, aborto... Primeiro emprego, experiência comprovada, estágio não (ou mal) remunerado... Não vamos nos alongar na discussão de mais esses itens. Voltaríamos a falar de obviedades. Basta dizer que, apesar de serem óbvias, as situações de exploração, exclusão, marginalização e criminalização das/os jovens continuam, são evidentes e, muitas vezes, endossadas por pessoas “esclarecidas” como nós. Com alguma freqüência, pessoas que se dizem libertadoras, acusam as/os jovens de omissão, comodismo, apatia, inexperiência, violência, irresponsabilidade... E alegam que a culpa dos desvios dessa geração se deve à sua total alienação política, social e religiosa.

Mas será este mesmo o retrato da juventude atual? Será mesmo esta uma geração de alienados? Vejamos outros números[4]:

As estatísticas (da pesquisa já citada da Unesco) mostram que os jovens estão identificados com os ideais de solidariedade, respeito às diferenças e igualdade de oportunidades (esse tipo de preocupação combina com perfis violentos?). 83% se posicionam politicamente (alienados/as?). 84% dos jovens acreditam que podem mudar o mundo (acomodados/as?).

Não podemos deixar de registrar também estes números: Embora 84% dos jovens acreditem que podem mudar o mundo, somente 22% fazem ou querem fazer alguma coisa. Seria isto sinal de comodismo, ou há outras causas?

“A resposta está, provavelmente, na pobreza de grande parte dos jovens brasileiros. Pelos dados da pesquisa do Projeto Juventude, 42% dos jovens vivem em famílias com renda de até dois salários mínimos e outros 31% em famílias com dois a cinco salários mínimos de renda... Por mais que os jovens nesta situação acreditem que a juventude pode mudar as coisas, eles sabem que têm que cuidar antes da própria sobrevivência, evitando serem tragados pela violência criminosa ou mergulhando nela, como tentativa menos pior.”[5]

“A juventude deseja ajudar o mundo a mudar e pensa em fazê-lo menos mediante a militância política do que pela ação direta. Mas a maior parte dela, antes de poder contribuir para a mudança, tem de ser ajudada... O que o “Perfil da Juventude Brasileira” deixa entrever é que os jovens brasileiros irão à luta por um Brasil melhor desde que obtenham as bases materiais mínimas de sobrevivência. Esta deveria ser a prioridade zero de qualquer programa público para a juventude, porque o futuro do país pode vir a depender dele.”[6]

Como podemos perceber, as/os jovens não são acomodadas/os, nem desinformadas/os. Eles são pressionados pelo sistema a deixar de lado suas reivindicações para providenciar o seu sustento, ou contribuir no sustento da família, ou ainda garantir o sustento de seus dependentes.

E no campo do Sagrado?

Também não é verdade dizer que falta religiosidade aos jovens de hoje. Vejamos:

Segundo pesquisas[7], podemos perceber o aumento da diversidade religiosa (de 99% de jovens católicos em 1890 para 73,6% em 2003), dos crentes sem religião e a centralidade da Bíblia na espiritualidade da juventude. Isso mostra que, longe de ser uma geração descompromissada religiosamente, trata-se antes de jovens preocupados/as com uma fé para além das instituições e em busca do sagrado.

Sabendo que fora das instituições não há como controlar um grupo – na medida em que esse grupo não se vê obrigado a seguir as regras institucionais – muitos líderes religiosos tendem a também marginalizar esses jovens, chamá-los de tolos, ingênuos, infiéis... Em vez de entender a rebeldia (que parece, mas nunca é gratuita), mais uma vez o adulto racionaliza e elege o jovem como problema. Também... Quem manda questionar as convenções milenarmente estabelecidas?

Eis uma ótima discussão a ser feita em nossas comunidades: Até onde os jovens são descompromissados com as liturgias, as festas, o bingo, o dízimo e os demais eventos da comunidade? E até onde sua rebeldia revela a discordância com o modelo vigente de evangelização de nossas igrejas?

Mas vamos, enfim, partir para a constatação que mais nos interessa no presente artigo: a centralidade da Bíblia na espiritualidade juvenil.

E por falar em Bíblia...

E a Bíblia? Será que ela pode ajudar as juventudes a se libertarem de todas essas amarras da sociedade? Se olharmos a leitura tradicional e as/os jovens na Bíblia, não! Esse, inclusive, pode ser o principal motivo de historicamente as juventudes terem reservas quanto à Palavra de Deus. Além de ser um instrumento dos adultos para castrar, impor limites aos anseios juvenis, as personagens jovens mencionadas na Bíblia são pessoas inexperientes, ou vítimas indefesas, dependentes da intervenção/libertação dos adultos, ou ainda guerreiros (notem o termo no masculino) que se tornam heróis mais por encarnarem os valores e os costumes adultos do que pelos seus feitos.

É certo dizer que o conceito de “juventude” é uma construção sociológica recente (como vimos acima) e, consequentemente, um termo desconhecido da época redacional da Bíblia. Mas isso não quer dizer que as pessoas não se organizassem em grupos. Lá, como cá, esses grupos se reuniam por afinidades, como classe social e faixa etária.

Vejamos alguns exemplos do Primeiro Testamento:

Em 1Rs 12,1-16 temos as causas da divisão do Império salomônico. O jovem Roboão ouvira as reclamações do povo, que considerava pesado o fardo imposto por seu pai, Salomão. Os anciãos aconselharam o rapaz a ser inteligente: ceder agora para reinar tranqüilo depois. Mas o conselho não agradou a Roboão, que instituiu novos conselheiros: seus colegas de infância (v. 8). Esses lhe disseram: “Torne o jugo ainda mais pesado do que fizera teu pai, que eles se curvarão”. Agora sim estava do jeito que Roboão queria; e foi o que ele fez. Com muita ironia, dizia ele que seu dedo mínimo era mais grosso do que os rins de seu pai. Resultado: “Voltemos às nossas tendas, Israel! Cuida da tua casa, Davi!” (v. 16).

O texto é uma crítica ao sistema monárquico, assim como muitos outros textos dos livros de Reis. A proposta de resistência fica bem clara no v. 16: “Já tivemos uma experiência monárquica, quando habitávamos o Egito; e não foi nada boa. Voltemos ao período das tendas, ao Israel tribal, à novidade que liberta.” Apesar de ser uma ótima proposta, o que aconteceu com a divisão do Império salomônico não foi o fim do sistema monárquico. Em pouco tempo, também as tribos do Norte foram submetidas a novo regime monárquico. Entretanto, o que chama atenção, dentro do que estamos analisando, é que a decisão de endurecer ainda mais a opressão sobre o povo não foi exclusiva do rei, mas de um grupo de jovens. Claro que sua condição juvenil não foi o fator determinante para essa manobra desastrada; pesou antes o poder da coroa. Todavia, o que queremos ressaltar é que, embora não existisse “juventude” enquanto conceito, havia sim grupos de jovens. Alguns, com poder de decidir o rumo de uma nação.

Outro grupo juvenil é o das vítimas indefesas, dependentes da intervenção/libertação dos adultos, como as mães solteiras, as jovens estupradas. É o caso de Diná, estuprada por Siquém (Gn 34,1-2). Diz a história que Siquém se apaixona por Diná, depois de tê-la violentado, e os irmãos e o pai dela fingem permitir o casamento, mas depois passam todos da casa de Siquém ao fio da espada (Gn 34,1-31). Nessa história trágica, os sentimentos de Diná são o que menos importa. Ela se enamorou de Siquém? Aprovou a barbárie que cometeram seus irmãos? Foi consultada sobre como se sentia?

Bem é verdade que outros jovens são tidos como heróis na Bíblia: Daniel e seus companheiros, os três jovens que desafiam Nabucodonosor e são jogados numa fornalha, mas não morrem queimados (Dn 3), os sete filhos que preferem a morte a comer carne oferecida aos ídolos (2Mc 7), Ester, Rute, Tobias, José e os reis Davi e Salomão, entre outros. Mas por que se tornaram heróis? Por serem jovens conscientizados, politizados, ativos na sociedade, ou por defenderem os valores morais e os princípios propostos por uma elite política, sacerdotal, patriarcal, adultocêntrica?

Davi, por exemplo! Por que motivo foi considerado um jovem exemplar? Aliás, Davi é muito mais elogiado pelos feitos da juventude do que pelos decretos reais de sua idade adulta. Mas que feitos são esses? Ora, Davi foi um herói de guerra (1Sm 17)! Sua grande glória foi ter matado um homem (Golias). Aí sua reputação ganhou força para levá-lo a derrubar Saul e se tornar o rei e futuro imperador de Israel.

Olhemos os heróis de guerra de hoje. Quem são eles, senão pessoas que na juventude abriram mão de seus ideais para defender a pátria, cuja soberania foi ameaçada por disputas de poder, embates provocados por líderes nacionais, senhores de 60, 70 anos de idade, ou mais? Davi teria matado Golias porque é próprio do jovem o ato de matar? Tudo bem... O jovem é capaz de matar... Mas Davi o matou por seus interesses juvenis? Não foi Saul que marchou contra os filisteus (1Sm 17,2)? Por que não foi Saul o autor do disparo? Ele estava lá! Não teria ele próprio oferecido sua armadura para proteger Davi (1Sm 17,38)?

Aqui cabe um parêntese, sobre a manipulação da força juvenil. Para animar seus soldados, nas duas guerras mundiais (principalmente na segunda), os EUA criaram super-heróis. Eram jovens com super-poderes, que enfrentavam as forças do mal (traduzindo: os que estavam do outro lado das trincheiras), usando somente uma capa e uma máscara. Os feitos heróicos de Davi, jovem e franzino, vencendo Golias, tinham a mesma função. Já na corte salomônica foram escritas histórias para justificar as expedições violentas dos exércitos de Davi e Salomão, cuja motivação única era expandir o seu reinado e torná-lo um império. É desse tempo a primeira redação do livro de Josué[8]. Ora, mostrando que a expansão era vontade de Javé e que a principal força de guerra vinha dos mais jovens, Davi conseguia manter seu exército poderoso e motivado. Quem sofria com isso? O povo como um todo, é claro! Mas quem ia para a frente de batalha? E tinham que ir... Era a vontade de Javé.

Sobre a visão negativa das juventudes, há um livro em especial, que não encontramos na Bíblia Hebraica, o Eclesiástico, ou Sirácida. O livro foi escrito originariamente em hebraico, no auge da dominação grega, por Jesus Ben Sirac, que vendo a cultura de seu povo ser suplantada pelo helenismo, resolveu escrever uma defesa dos costumes judaicos. Tendo se perdido o texto original, o que chegou até nós foi uma tradução para o grego, feita pelo neto do autor com o intuito de fazer perseverarem na Lei os judeus da diáspora (Eclo, prólogo, vv. 34-35).

O elogio ao sacerdote Simão II (penúltimo da linhagem sadoquita), em Eclo 51,1-21, e a identificação da sabedoria (tema do livro) com a Lei de Moisés (Eclo 24,23-29), aliados à importância dada ao Templo e ao culto (Eclo 7,29-31; 50,1-21), levam-nos a crer que o autor pertenceu à elite sacerdotal de Jerusalém.

Para se opor às escolas filosóficas, principais promotoras da cultura helênica, implantadas pelos gregos em todas as suas províncias, os judeus criaram escolas onde as/os jovens aprenderiam a tradição do judaísmo. É bem provável que Jesus Ben Sirac tivesse sua própria escola (Eclo 51,23). A iniciativa era válida e necessária para reavivar a consciência histórica do povo, mas carregava infelizmente as limitações da elite sacerdotal, como a xenofobia, o patriarcalismo e o conservadorismo extremado[9].

Como as escolas filosóficas priorizavam as/os jovens, teoricamente mais suscetíveis à inculturação dos costumes gregos, estas/es mereceram severas reprimendas do autor. Vejamos alguns exemplos[10]:

ü  Eclo 9,5: Não fites uma jovem, para não ser pego na armadilha quando ela espiar (ou, como diz na nota de rodapé: “para não ser punido com ela”);
ü  Eclo 30,11-12: Não lhe dês liberdade na juventude e não feches os olhos diante de suas tolices. Obriga-o a curvar a espinha na sua juventude, bate-lhe nos flancos enquanto ainda é menino; do contrário, uma vez obstinado, te desobedecerá e tu experimentará o sofrimento.
ü  Eclo 32,7: Fala, ó jovem, se te é necessário, se fores interrogado ao menos duas vezes.

Ser jovem, no período retratado pelo Primeiro Testamento, realmente não era fácil. Até mesmo Eclesiastes, ou Qohelet, um livro revolucionário em vários sentidos, tem lá suas ressalvas:

ü  Ecl 11,10: Afasta do teu coração o desgosto, e o sofrimento do teu corpo, pois juventude e cabelos negros são vaidade.

E no Segundo Testamento?

Será que a situação das juventudes melhora quando Jesus entra em cena? Vemos Jesus curando alguns deles: Ressuscita a filha de Jairo, chefe da sinagoga (Mc 5,21-24.35-43); ressuscita também o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17). Ele mesmo aparece, aos 12 anos, debatendo de igual para igual com os Doutores da Lei (assuntos juvenis?). Tem o jovem rico, que cumpria as leis, mas não tinha capacidade de se desfazer do dinheiro. Mas ele só é jovem em um dos evangelistas (Mt 19,16-22); nos demais, é um adulto que observa a lei desde a juventude (Mc 10,17-22; Lc 18,18-23). Em todas as situações, o jovem precisa ser salvo, liberto, ajudado. Difícil é encontrar um/a jovem, explicitamente mencionado em sua condição de jovem, sendo protagonista.

Em Atos, nas cartas e no Apocalipse, a situação não muda muito. O tratamento destinado à juventude continua o mesmo. Com uma boa vontade tremenda podemos deduzir que Maria era jovem quando concebeu Jesus (a Bíblia não diz), que alguns dos discípulos de Jesus eram muito moços quando Ele os chamou (segundo a tradição, João teria 18 anos). Mas ser jovem parece não ter tido muita importância na compilação dos relatos.

Teriam os autores bíblicos ignorado a importância da juventude? Há um rito judeu – o bar mitzvá – pelo qual todo menino judeu passa (ainda hoje), aos 12/13 anos. É o rito de passagem da infância direto para a idade adulta. Sendo assim, à época da redação, não existiria a juventude como categoria social, mas somente como fase biológica. A partir dos 13 anos e 1 dia, o menino era um homem. Por isso fala-se de Jesus aos 12 anos; aos 12 anos também é curada a filha de Jairo. Ambos estão no período da passagem, estão se preparando para ser adultos.

Quando se diz, declaradamente, nos textos bíblicos, que a pessoa é moça, nova, de pouca idade, é porque se quer enfatizar a pouca experiência, a ingenuidade, a falta de discernimento de tal pessoa. Ou então, como nos casos dos jovens heróis, é para mostrar que Deus pode suscitar atos de bravura mesmo em pessoas ainda imaturas para a vida pública. Ou ainda para encorajar outros jovens a cometer atos de bravura pelo seu país (nada diferentes das propagandas das Forças Armadas hoje).

Por uma leitura juvenil da Bíblia

Fica evidente que, se procurarmos a/o jovem na Bíblia, vamos reforçar os preconceitos de nossa sociedade, ou iremos adotar uma postura de salvadores de uma geração à deriva. Assim sendo, contribuiremos para manter a filha de Jairo (= jovem) deitada, dada como morta, amordaçada, infantilizada, mantida sob controle, totalmente dependente, à espera da intervenção salvadora dos adultos.

Mas se, em vez disso, deixarmos que a própria juventude se interesse pela Bíblia, apodere-se dos textos, produza uma hermenêutica juvenil, qual será o resultado? Mais do que isso... Também nós, adultos, podemos nos esforçar, principalmente se julgamos fazer uma leitura libertadora da Bíblia, por ler os textos acolhendo também a prespectiva juvenil. Se, por exemplo, retomarmos 1Rs 12,1-16 e percebermos que, apesar de Roboão e seus conselheiros serem jovens, o que representavam era uma volta ao antigo, ao velho, ao sistema monárquico egípcio, enquanto as tribos do norte (haveria jovens entre eles? somente jovens?) queriam o novo, a novidade do sistema tribal, estaremos contribuindo para uma leitura juvenil.

Aliás, estaremos proporcionando uma leitura que ultrapasse a dicotomia jovem-adulto, que em vez de promover as juventudes, acirra ainda mais os ânimos e o antagonismo entre gerações. Sim, este é um risco! Para se libertar de uma leitura adultocêntrica, as juventudes podem inconscientemente reproduzir o sistema excludente e deixar as/os adultos de lado. É preciso que ambos se libertem.

Lemos acima que a Bíblia, apesar dos pesares, é central na espiritualidade das juventudes. Que tipo de leitura elas estarão fazendo? Pelo que vimos, o interesse certamente não se deve à identificação com as/os jovens que aparecem nos textos.

Em nossas experiências, vemos que as juventudes não aceitam as interpretações tradicionais das Escrituras. Estão sempre em busca de alternativas para ligar os textos à sua realidade, mesmo que muitas vezes façam uma verdadeira ginástica mental para alcançar seus objetivos; criatividade não lhes falta.

Sendo assim, por que não recriar as relações, libertar sim as/os jovens do peso da discriminação, mas também nos libertar, como adultos, do peso do preconceito, da falta de misericórdia que nos impede de reconhecer o amadurecimento como um processo a percorrer, feito por etapas, e que as juventudes podem ser inexperientes por terem percorrido um trecho menor, mas com certeza têm muito a oferecer, com seu dinamismo e santa rebeldia?

Talvez falte orientação – e aí nós adultos podemos ajudar –, mas não nos esqueçamos de que eles também possuem necessidades específicas, sonhos, ideais, uma realidade própria. E que é com essas propriedades que devemos ir com eles às Escrituras, para juntos trazermos de lá luzes que transformarão definitivamente as estruturas e dignificarão a vida, não só do jovem urbano, mas das juventudes em geral.

É assim que entendemos a parábola do Pai Misericordioso (Lc 15,11-32). O filho mais novo representa a juventude, rebelde, teimosa, sem medo de arriscar. O filho mais velho são os adultos, superiores, estáveis, prudentes. Ambos estão errados, um por não querer a graça de estar diante do Pai, o outro por achar que só ele tem direito, que estar na plenitude é viver como ele, cultivar os valores dele. E o Pai abraça a ambos, faz festa para todos. A parábola não diz se os irmãos se deram as mãos. Será que não está a nosso cargo fazer o final da história?

Concluindo: “É de sonho e de pó...”

Queremos concluir falando de utopias. Falemos de dois jovens do Primeiro Testamento: José (filho de Jacó) e Daniel (profeta do livro de mesmo nome). O que eles têm em comum? A capacidade de decifrar os sonhos.

José vai parar no Egito porque seus irmãos ficam com inveja e ódio dele e de seus sonhos (Gn 37). Por causa de uma armadilha, José vai parar na cadeia (Gn 39). Faz amizade com os colegas de cela e interpreta seus sonhos (Gn 40). Um dos colegas é liberto do cativeiro e volta à função de funcionário do faraó, que também tem um sonho. Ninguém consegue explicar que sonho é este, mas o funcionário se lembra de José e sugere ao faraó que consulte o prisioneiro; é o que faz o faraó (Gn 41). José não só explica o sonho como acaba se tornando o vice-rei, ou primeiro-ministro de então.

Pena que deste dom de interpretar sonhos José se aproveite para escravizar todos os povos da região, inclusive seu pai e irmãos (Gn 47,13-26). Mas uma coisa não podemos negar: através dos sonhos, José sabia muito bem ler a realidade. Ironicamente, os jovens são acusados de sonhar acordados, ou de ser sonhadores. Há, inclusive, um ditado que diz: “Enquanto o jovem sonha, o adulto se mantém acordado”. Mas não foi através dos sonhos que José viu a realidade?

Vamos para Daniel (Dn 2). Enquanto o faraó, na história de José, parecia ser bem benevolente, tanto que se dispôs a ouvir um preso, Nabucodonosor não parece nada amigável. Ele tem um sonho e quer que os sábios adivinhem o que ele sonhou. Como ninguém da corte consegue fazer isso, Nabucodonosor manda matar todos os magos e adivinhos da Babilônia. Daniel pergunta ao chefe da guarda real o que está acontecendo e este explica a situação. Daniel pede uma audiência e promete adivinhar o sonho do rei, fazendo questão de dizer que isso não era habilidade dele, mas ação do Deus de Israel. Ele consegue adivinhar o sonho do rei e este se prostra, convencido de que Javé é o Deus verdadeiro, o único Deus.

Ora, o Nabucodonosor histórico nunca fez isso, mas interessa perceber que também Daniel decifra sonhos. E que com isso ele consegue transformar a realidade. Esta é a função dos sonhos, das utopias. Não se trata de viver alienado, mas de projetar um futuro melhor e seguir em busca dele. Embora os dois casos citados mostrem a habilidades individuais de interpretar os sonhos, obviamente José e Daniel são símbolos de um povo. Então são sonhos que se sonha junto. É preciso sonhar, é preciso ter utopias. São elas que transformam a realidade. E a realidade de nossas juventudes só irá mudar quando não tivermos medo nem vergonha de sonhar; e sonhar alto.

Uma dedicatória

Por fim, queremos dedicar este artigo a todas as tribos juvenis, mas especialmente ao Padre Gisley, Assessor Nacional do Setor Juventude da CNBB e líder do movimento “Juventude em Marcha contra a Violência”, morto dia 15 de junho deste ano, por 4 jovens que queriam roubar seu automóvel, um deles com menos de 18 anos...

É irônico que uma liderança engajada na luta contra a redução da maioridade penal tenha morrido assim. Mas o pior é que o fato virou argumento a favor dos reducionistas. Oremos para que os nossos jovens consigam se desvencilhar desta armadilha e que a morte de Padre Gisley não tenha sido em vão.



[1] POSSATO JR., José Luiz: Entreter ou controlar?. Disponível em; http://osperegrinos.blogspot.com/2009/08/entreter-ou-controlar.html. Acesso em: 02/09/2009.
[2] Ver Intr. de DICK, Hilário. Gritos Silenciados, mas Evidentes – Jovens Construindo Juventude na História, pág. 13 a 27. Ed. Loyola, São Paulo, Brasil, 2003.
[3] Citado no artigo de SINGER, Paul: A Juventude como Coorte. Ver em: ABRAMO, Helena Wendel e MARTONI BRANCO, Pedro Paulo: Retratos da Juventude Brasileira, pág. 29. Ed. Fundação Perseu Abramo, São Paulo, Brasil, 2005.
[4] Os dados foram extraídos do artigo de SINGER, Paul: A Juventude como Coorte, op. cit., pág. 27 a 35. Os parênteses são nossos.
[5] Citado no artigo de SINGER, Paul, op. cit., pág. 35 – 1º parágrafo.
[6] Citado no artigo de SINGER, Paul, op. cit., pág. 35 – 4º parágrafo.
[7] Confira o artigo de RODRIGUES, Solange dos Santos: Nova Trindade – Busca, Fé e Questionamento. In: Revista Ciência & Vida – Sociologia: Especial sobre Juventude Brasileira, ano1 nº 2, pág. 64 a 73. Ed. Escala, São Paulo, Brasil, 2009.
[8] Ver: BOHN GASS, Ildo. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Império de Davi e Salomão. Ed. CEBI, São Leopoldo, Brasil, 2003.
[9] Ver: BOHN GASS, Ildo. Uma Introdução à Bíblia – Período Grego e Vida de Jesus. Ed. CEBI, São Leopoldo, Brasil, 2005.
[10] Utilizamos a tradução da BÍBLIA JERUSALÉM.