domingo, 30 de dezembro de 2018

O MEC, UM DISCURSO E O ANO NOVO

A última postagem de 2018 bem podia ser um desejo de Boas Festas, ou de um Feliz 2019, mas...
Tive conhecimento hoje de uma notícia publicada em 13/12/2018 no G1, sob o título "MEC propõe prova como a da OAB para professores atuarem no ensino básico" (leia aqui na íntegra).
Como bem colocou uma colega de magistério, já existe um mecanismo de avaliação: chama-se CONCURSO! Isso mesmo! Aquele exame que anda tão "esquecido" pelos nossos governantes. Ainda segundo ela: "Nosso país, na área da educação, não precisa de cobrança, precisa de recurso, precisa de respeito, de reconhecimento."
Partilho de sua indignação! O tempo todo o discurso da elite busca convencer a população de que nós, professoras e professores, não sabemos o que estamos fazendo em sala de aula. Felizmente, temos os estudantes como testemunhas. Eles e elas sabem o que fazemos e, de muitas formas, dão mostras desse reconhecimento. Foi pensando nisso que escrevi o meu discurso de paraninfo, proferido na última sexta-feira (28/12).
Gostaria, portanto, de deixá-lo aqui, desejando entrar no Ano Novo com outro tipo de mensagem, algo que contemple o que foi meu 2018 e partilhe o que espero não só de meus estudantes, mas de todas e de todos à minha volta em 2019. Boa leitura e... Vamos à luta!!!
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Queridas jovens, queridos jovens, peço a vocês, razões desta solenidade, licença para dizer, ainda, algumas palavrinhas. Espero não seja algo do tipo “última aula”. Alguns de nós, professoras e professores, temos esse costume de querer transformar qualquer momento em uma oportunidade de aprendizado. Mas... Chega, né!?
Falo especialmente por minha experiência com o noturno. Nunca vi jovens tão ansiosos pelo fim de uma etapa. Algo preocupante e incompreensível para nós, adultos que olhamos com saudosismo para o que chamávamos de colegial. Vai aí, claro, um certo distanciamento. O tempo passa... Temos o costume de enaltecer os tempos idos e criticar ferozmente o momento presente. Mas falo em comparação com as turmas anteriores. Vejo um crescente desejo de sair logo da escola.
Vivemos, obviamente, um processo contínuo de aceleração. Tudo é muito conectado, muito online. Pensemos no videogame. Os jogos exigem respostas rápidas, do tipo “atire primeiro, pergunte depois”. O computador vai propondo missões, aumentando o grau de dificuldade, jorrando problemas para resolvermos. E nós? Nós não vivemos, apenas reagimos, sobrevivemos.
Sem perceber, somos treinadas e treinados diariamente para realizar tarefas. Cadê de parar e refletir? Não dá tempo! Há um inimigo logo ali! Tantos tiros, tantos pontos. A tela mostra, implacável e instantaneamente, a nossa performance. E o pior: o resultado nunca é satisfatório. Estamos sempre sob pressão. E assim jogamos o que deveria ser apenas um entretenimento como se disso dependessem nossas vidas.
Talvez por isso cada geração queira mais rapidamente o fim das missões, digo, das etapas. E esse resultado, digo, essas notas que não saem logo? Posso dizer, aqui, caros formandos, o que se dizia em sala de aula sobre os professores que não divulgavam as notas logo depois da prova? O nível de ansiedade é absurdo! Antes tínhamos estudantes que, no auge daquela explicação tri complexa, erguiam a mão para romper o silêncio e dizer essas sábias palavras: “Posso ir ao banheiro?” Hoje, a pergunta que mais se ouve é: “Que aula a gente tem depois?” Ou pior: “O que nós tem depois?”
Jovens, por favor... Vivam o presente! Pode não ser maravilhoso... Vocês mesmos são testemunhas do que estamos vivendo. Há décadas que o ensino vem sendo sucateado, que não só os professores, mas a escola como um todo vem sendo desvalorizada. Aliás, vai aqui o meu muito obrigado a vocês! Quantas vezes foram compreensivos e ajudaram a escola a atravessar tantas turbulências. Eu mesmo presenciei estudante brigando nas redes sociais e na porta da escola para defender os professores e a luta por uma educação de qualidade. Meu desejo é que tenham aprendido com isso o quanto é importante lutar não só pelo próprio umbigo, mas pelo bem de todas e de todos.
O que fizemos (ou, pelo menos, gostaríamos de ter feito) foi dar instrumentos para vocês navegarem. A física, para calcular a velocidade, o tempo e o espaço de suas realizações. A biologia, para testar a resistência do seu organismo. A química, para pensar todas as combinações possíveis e saudáveis para que tenham energia. A matemática, para calcular as probabilidades. A história, para que certos erros não se repitam. A geografia, para saberem onde estão pisando. A filosofia e a sociologia, para que pensem; não reajam apenas. A educação física, para explorarem os limites de seus corpos. As linguagens, enfim, para que se comuniquem. A arte e, em especial, a literaturaesse meu xodó –, para que a imaginação seja sua bússola nessa nova caminhada.
Vocês estão prontas, vocês estão prontos! Não se percam! Sejam felizes e, mais uma vez: Vivam o presente! Estejam com os pés fincados no chão da realidade. Olhem o mundo à sua volta. Vocês estão livres da escola, mas não da vida. Há um futuro imenso pela frente. Pode ser grandioso, ou apenas uma sucessão de tempos. Isso depende, em grande parte, de vocês. Se não entenderem o momento atual, se não buscarem respostas, não haverá futuro com que sonhar. Avante, linda juventude do CAIC Madezatti (nome da escola)!

domingo, 9 de dezembro de 2018

NÃO DESCANSAREMOS ATÉ ENCONTRAR A FELICIDADE


A pastoral da Juventude nacional da ICAR está lançando uma nova campanha. Desta vez, o movimento é de enfrentamento aos ciclos de violência contra a mulher. Aqui no Rio Grande do Sul houve um encontro em junho deste ano. O lema, inspirado em um versículo bíblico, foi: Não descansaremos até encontrar a felicidade.
A frase original é de Noemi, sogra de Rute. O texto bíblico é mais ou menos assim: Minha filha, não hei de buscar-te um lugar de repouso, para que sejas feliz? (Rt 3,1). Há uma ligação especial entre essas duas mulheres. Noemi é uma retirante. Fugindo da fome, ela e o marido Elimelec (ou Elimeleque) saem de sua terra, Belém de Judá, com seus dois filhos, Maalon (ou Malom) e Quelion (ou Quiliom), rumo a Moab (ou Moabe). Estes, por sua vez, desposam duas moabitas, Orfa e Rute. Acontece que os homens dessa história morrem todos, deixando as três mulheres viúvas, duas delas muito precocemente. Ciente disso, Noemi despede as duas, pois pretende voltar a Belém e deseja que ambas reconstruam suas vidas junto a seu povo. Depois de muito choro, Orfa aceita a proposta, mas Rute responde corajosamente: “Onde for sua morada, será também a minha. O teu povo será o meu povo e o teu Deus, o meu Deus.” (Rt 1,16). É essa firmeza que transforma a sogra em mãe e protetora. Juntas, elas têm um plano para prover sua segurança, isto é, um lugar de repouso. Numa expressão de nossos dias, “ter (um lugar) onde caírem mortas”.
Que plano é este? Veremos adiante! Antes, porém... Como bem sabemos, Rute é bisavó de Davi (Rt 4,17). Na genealogia de Jesus, segundo Mt 1,1-17, cinco mulheres merecem destaque: ela, Tamar, Raab (ou Raabe), a esposa de Urias (Betsabeia ou Bate-Seba) e Maria. O curioso é que as genealogias eram um modo de identificar a pureza da linhagem patriarcal dos filhos (homens) de Israel. Por que, então, citar essas cinco mulheres? E mais... Cinco pecadoras?
Pecadoras, sim! Pelo menos, na ótica patriarcal. Senão, vejamos: Tamar foi para a esquina fazer ponto e, nisso, aplicou o famoso “golpe da barriga” em seu sogro Judá (Gn 38,15-19); Raab era prostituta (Js 2,1; 6,17.25); Betsabeia, casada com Urias (2Sm 11,3), general – isto é, homem de confiança – de Davi, deu a este dois filhos (o primeiro, morto ainda bebê [2Sm 12,16-18a]; o segundo, Salomão [2Sm 12,24]). Quanto a Maria... É um pouco mais complicado de afirmar, mas... esqueçamo-nos, por instantes, de que há uma tradição piedosa de mais de dois mil anos por trás de sua história. Como soaria a vocês, hoje, a gravidez de uma adolescente por obra do Espírito Santo? Para José não foi muito diferente. Tanto que ele quis abandoná-la (Mt 1,18-19). Não fosse um anjo...
Todas essas mulheres, ou tinham motivos nobres para o que fizeram, ou foram vítimas das circunstâncias. Observem, por exemplo, o que diz 2Sm 11,4: Então, enviou Davi mensageiros que a trouxessem; ela (Betsabeia) veio, e ele se deitou com ela. Tendo-se ela purificado da sua imundícia, voltou para sua casa. Aulinha básica de português: quando o verbo está na voz ativa, quem pratica a ação é o sujeito. Em ela veio, e ele se deitou com ela não diz que Betsabeia busca o ato sexual, que é intenção dela ter relações com Davi. Quem domina a cena é o rei. A ela cabe apenas limpar-se, após a consumação, “de sua imundícia”. Ou seja: o rei quis, mas quem ficou impura? No mundo governado pelos homens é assim: o regente manda, a súdita obedece (e leva a culpa).
É muito importante ter isso em mente porque é do que se trata o capítulo 3 do livro de Rute. A história se parece com a de Tamar. Esta enganou o sogro porque primeiramente este a tapeou, não fazendo seus filhos cumprirem a lei do levirato (que obrigava o cunhado a casar-se com a viúva de seu irmão e gerar filhos que pertenceriam à genealogia deste – Dt 25,5-10). Também Rute era viúva, mas não tinha cunhado, pois ambos os irmãos haviam morrido (Rt 1,3-5). Não ter herdeiros era sinal de maldição entre os homens. Por sorte, havia um parente, uma pessoa importante da família de Elimelec. Este homem era Booz (ou Boaz – Rt 2,1). E aí entra em ação o plano das duas mulheres desamparadas. A lei do levirato era extensiva aos parentes mais próximos, caso não houvesse um irmão para assumir o compromisso de dar uma linhagem ao falecido. Assim como Tamar enganou o sogro Judá, fazendo-o acreditar que ela era uma prostituta, Rute teve que manipular os acontecimentos. Embriagou Booz e deitou-se com ele, que naquele momento pensava apenas estar desfrutando dos prazeres concedidos por uma linda estrangeira (Rt 3,1-8). Quando soube, porém, que se deitara com a viúva de um membro de seu clã, tentou passar a responsabilidade a outro. Este recusou, para não prejudicar seus herdeiros (Rt 4,6). Booz não teve outra alternativa, então, a não ser assumir as consequências por seu ato (Rt 4,9-10).
Na ótica machista, Tamar e Rute aplicaram um golpe. Se é verdade que os fins não justificam os meios, por outro lado bem disse o filósofo Thoreau que, diante de governos tiranos e leis injustas, só nos resta a desobediência civil. Se hoje juízes mancomunados com o poder distorcem a letra, as mulheres empobrecidas da Bíblia não ficam esperando a justiça (nem a humana, nem a divina) atuar “naturalmente”. Se Jesus disse para sermos sábios como as serpentes (isto é, os escribas – Mt 10,16), é com inteligência que elas combatem o mal e lutam por seus direitos, assumindo o protagonismo de suas vidas e forçando os acontecimentos a desembocarem em sua libertação. Isso, por si só, já é motivo mais do que suficiente para que estejam na genealogia de Jesus.
O presente momento é de repensar nossa caminhada. Que frutos colhemos atualmente em nosso processo de resistência? Qual o papel das mulheres nessa luta? Respeitamos seus espaços e lutamos, com elas, pela valorização, conquista e/ou manutenção de seus direitos? Que direitos são estes?
Precisamos ouvi-las, empaticamente. Mateus escolhe cinco mulheres em situações emblemáticas para nos lembrar disso. É nosso dever, portanto, admitir no mínimo que, se elas dizem estar sendo oprimidas, estão, de fato, sendo oprimidas. Não é vitimização dizerem que fulano, por mais respeitável que seja nos círculos mais progressistas, libertários (como deveriam ser respeitáveis Judá e Booz, no seu tempo), teve uma atitude machista com elas. É muito importante, também, o resgate da memória, mostrar que a história não é feita somente de homens. E mais: que elas estiveram presentes nos momentos cruciais (como ao pé da cruz, por exemplo). Foi isso o que Mateus fez; é isso que devemos fazer. Não descansemos, enfim, enquanto não conquistarmos, para todos e todas, a felicidade.