domingo, 9 de dezembro de 2018

NÃO DESCANSAREMOS ATÉ ENCONTRAR A FELICIDADE


A pastoral da Juventude nacional da ICAR está lançando uma nova campanha. Desta vez, o movimento é de enfrentamento aos ciclos de violência contra a mulher. Aqui no Rio Grande do Sul houve um encontro em junho deste ano. O lema, inspirado em um versículo bíblico, foi: Não descansaremos até encontrar a felicidade.
A frase original é de Noemi, sogra de Rute. O texto bíblico é mais ou menos assim: Minha filha, não hei de buscar-te um lugar de repouso, para que sejas feliz? (Rt 3,1). Há uma ligação especial entre essas duas mulheres. Noemi é uma retirante. Fugindo da fome, ela e o marido Elimelec (ou Elimeleque) saem de sua terra, Belém de Judá, com seus dois filhos, Maalon (ou Malom) e Quelion (ou Quiliom), rumo a Moab (ou Moabe). Estes, por sua vez, desposam duas moabitas, Orfa e Rute. Acontece que os homens dessa história morrem todos, deixando as três mulheres viúvas, duas delas muito precocemente. Ciente disso, Noemi despede as duas, pois pretende voltar a Belém e deseja que ambas reconstruam suas vidas junto a seu povo. Depois de muito choro, Orfa aceita a proposta, mas Rute responde corajosamente: “Onde for sua morada, será também a minha. O teu povo será o meu povo e o teu Deus, o meu Deus.” (Rt 1,16). É essa firmeza que transforma a sogra em mãe e protetora. Juntas, elas têm um plano para prover sua segurança, isto é, um lugar de repouso. Numa expressão de nossos dias, “ter (um lugar) onde caírem mortas”.
Que plano é este? Veremos adiante! Antes, porém... Como bem sabemos, Rute é bisavó de Davi (Rt 4,17). Na genealogia de Jesus, segundo Mt 1,1-17, cinco mulheres merecem destaque: ela, Tamar, Raab (ou Raabe), a esposa de Urias (Betsabeia ou Bate-Seba) e Maria. O curioso é que as genealogias eram um modo de identificar a pureza da linhagem patriarcal dos filhos (homens) de Israel. Por que, então, citar essas cinco mulheres? E mais... Cinco pecadoras?
Pecadoras, sim! Pelo menos, na ótica patriarcal. Senão, vejamos: Tamar foi para a esquina fazer ponto e, nisso, aplicou o famoso “golpe da barriga” em seu sogro Judá (Gn 38,15-19); Raab era prostituta (Js 2,1; 6,17.25); Betsabeia, casada com Urias (2Sm 11,3), general – isto é, homem de confiança – de Davi, deu a este dois filhos (o primeiro, morto ainda bebê [2Sm 12,16-18a]; o segundo, Salomão [2Sm 12,24]). Quanto a Maria... É um pouco mais complicado de afirmar, mas... esqueçamo-nos, por instantes, de que há uma tradição piedosa de mais de dois mil anos por trás de sua história. Como soaria a vocês, hoje, a gravidez de uma adolescente por obra do Espírito Santo? Para José não foi muito diferente. Tanto que ele quis abandoná-la (Mt 1,18-19). Não fosse um anjo...
Todas essas mulheres, ou tinham motivos nobres para o que fizeram, ou foram vítimas das circunstâncias. Observem, por exemplo, o que diz 2Sm 11,4: Então, enviou Davi mensageiros que a trouxessem; ela (Betsabeia) veio, e ele se deitou com ela. Tendo-se ela purificado da sua imundícia, voltou para sua casa. Aulinha básica de português: quando o verbo está na voz ativa, quem pratica a ação é o sujeito. Em ela veio, e ele se deitou com ela não diz que Betsabeia busca o ato sexual, que é intenção dela ter relações com Davi. Quem domina a cena é o rei. A ela cabe apenas limpar-se, após a consumação, “de sua imundícia”. Ou seja: o rei quis, mas quem ficou impura? No mundo governado pelos homens é assim: o regente manda, a súdita obedece (e leva a culpa).
É muito importante ter isso em mente porque é do que se trata o capítulo 3 do livro de Rute. A história se parece com a de Tamar. Esta enganou o sogro porque primeiramente este a tapeou, não fazendo seus filhos cumprirem a lei do levirato (que obrigava o cunhado a casar-se com a viúva de seu irmão e gerar filhos que pertenceriam à genealogia deste – Dt 25,5-10). Também Rute era viúva, mas não tinha cunhado, pois ambos os irmãos haviam morrido (Rt 1,3-5). Não ter herdeiros era sinal de maldição entre os homens. Por sorte, havia um parente, uma pessoa importante da família de Elimelec. Este homem era Booz (ou Boaz – Rt 2,1). E aí entra em ação o plano das duas mulheres desamparadas. A lei do levirato era extensiva aos parentes mais próximos, caso não houvesse um irmão para assumir o compromisso de dar uma linhagem ao falecido. Assim como Tamar enganou o sogro Judá, fazendo-o acreditar que ela era uma prostituta, Rute teve que manipular os acontecimentos. Embriagou Booz e deitou-se com ele, que naquele momento pensava apenas estar desfrutando dos prazeres concedidos por uma linda estrangeira (Rt 3,1-8). Quando soube, porém, que se deitara com a viúva de um membro de seu clã, tentou passar a responsabilidade a outro. Este recusou, para não prejudicar seus herdeiros (Rt 4,6). Booz não teve outra alternativa, então, a não ser assumir as consequências por seu ato (Rt 4,9-10).
Na ótica machista, Tamar e Rute aplicaram um golpe. Se é verdade que os fins não justificam os meios, por outro lado bem disse o filósofo Thoreau que, diante de governos tiranos e leis injustas, só nos resta a desobediência civil. Se hoje juízes mancomunados com o poder distorcem a letra, as mulheres empobrecidas da Bíblia não ficam esperando a justiça (nem a humana, nem a divina) atuar “naturalmente”. Se Jesus disse para sermos sábios como as serpentes (isto é, os escribas – Mt 10,16), é com inteligência que elas combatem o mal e lutam por seus direitos, assumindo o protagonismo de suas vidas e forçando os acontecimentos a desembocarem em sua libertação. Isso, por si só, já é motivo mais do que suficiente para que estejam na genealogia de Jesus.
O presente momento é de repensar nossa caminhada. Que frutos colhemos atualmente em nosso processo de resistência? Qual o papel das mulheres nessa luta? Respeitamos seus espaços e lutamos, com elas, pela valorização, conquista e/ou manutenção de seus direitos? Que direitos são estes?
Precisamos ouvi-las, empaticamente. Mateus escolhe cinco mulheres em situações emblemáticas para nos lembrar disso. É nosso dever, portanto, admitir no mínimo que, se elas dizem estar sendo oprimidas, estão, de fato, sendo oprimidas. Não é vitimização dizerem que fulano, por mais respeitável que seja nos círculos mais progressistas, libertários (como deveriam ser respeitáveis Judá e Booz, no seu tempo), teve uma atitude machista com elas. É muito importante, também, o resgate da memória, mostrar que a história não é feita somente de homens. E mais: que elas estiveram presentes nos momentos cruciais (como ao pé da cruz, por exemplo). Foi isso o que Mateus fez; é isso que devemos fazer. Não descansemos, enfim, enquanto não conquistarmos, para todos e todas, a felicidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário