A pastoral da Juventude nacional da ICAR está lançando uma nova
campanha. Desta vez, o movimento é de enfrentamento aos ciclos de violência
contra a mulher. Aqui no Rio Grande do Sul houve um encontro em junho deste ano.
O lema, inspirado em um versículo bíblico, foi: “Não descansaremos até encontrar a felicidade.”
A frase original é de Noemi, sogra de Rute. O texto bíblico é mais
ou menos assim: “Minha filha, não
hei de buscar-te um lugar de repouso, para que sejas feliz?” (Rt 3,1).
Há uma ligação especial entre essas duas mulheres. Noemi é uma retirante.
Fugindo da fome, ela e o marido Elimelec (ou Elimeleque) saem de sua terra, Belém de Judá, com seus dois filhos,
Maalon (ou Malom) e Quelion (ou Quiliom),
rumo a Moab (ou Moabe). Estes, por
sua vez, desposam duas moabitas, Orfa e Rute. Acontece que os homens dessa
história morrem todos, deixando as três mulheres viúvas, duas delas muito precocemente.
Ciente disso, Noemi despede as duas, pois pretende voltar a Belém e deseja que
ambas reconstruam suas vidas junto a seu povo. Depois de muito choro, Orfa
aceita a proposta, mas Rute responde corajosamente: “Onde for sua morada, será
também a minha. O teu povo será o meu povo e o teu Deus, o meu Deus.” (Rt 1,16).
É essa firmeza que transforma a sogra em mãe e protetora. Juntas, elas têm um
plano para prover sua segurança, isto é, um lugar de repouso. Numa expressão de
nossos dias, “ter (um lugar) onde caírem mortas”.
Que plano é este? Veremos adiante! Antes, porém... Como bem sabemos,
Rute é bisavó de Davi (Rt 4,17). Na genealogia de Jesus, segundo Mt 1,1-17,
cinco mulheres merecem destaque: ela, Tamar, Raab (ou Raabe), a esposa de Urias (Betsabeia ou Bate-Seba)
e Maria. O curioso é que as genealogias eram um modo de identificar a pureza da
linhagem patriarcal dos filhos (homens) de Israel. Por que, então, citar essas
cinco mulheres? E mais... Cinco pecadoras?
Pecadoras, sim! Pelo menos, na ótica patriarcal. Senão, vejamos:
Tamar foi para a esquina fazer ponto e, nisso, aplicou o famoso “golpe da
barriga” em seu sogro Judá (Gn 38,15-19); Raab era prostituta (Js 2,1; 6,17.25);
Betsabeia, casada com Urias (2Sm 11,3), general – isto é, homem de confiança –
de Davi, deu a este dois filhos (o primeiro, morto ainda bebê [2Sm 12,16-18a];
o segundo, Salomão [2Sm 12,24]). Quanto a Maria... É um pouco mais complicado
de afirmar, mas... esqueçamo-nos, por instantes, de que há uma tradição piedosa
de mais de dois mil anos por trás de sua história. Como soaria a vocês, hoje, a
gravidez de uma adolescente por obra do Espírito Santo? Para José não foi muito
diferente. Tanto que ele quis abandoná-la (Mt 1,18-19). Não fosse um anjo...
Todas
essas mulheres, ou tinham motivos nobres para o que fizeram, ou foram vítimas
das circunstâncias. Observem, por exemplo, o que diz 2Sm 11,4: “Então, enviou Davi mensageiros que a
trouxessem; ela
(Betsabeia) veio, e ele se deitou com ela. Tendo-se ela
purificado da sua imundícia, voltou para sua casa”. Aulinha
básica de português: quando o verbo está na voz ativa, quem pratica a ação é o
sujeito. Em “ela veio, e ele se deitou com ela” não diz
que Betsabeia busca o ato sexual, que é intenção dela ter relações com Davi.
Quem domina a cena é o rei. A ela cabe apenas limpar-se, após a consumação, “de sua imundícia”. Ou seja: o rei quis,
mas quem ficou impura? No mundo governado pelos homens é assim: o regente
manda, a súdita obedece (e leva a culpa).
É muito importante ter isso em mente porque é do que se trata o
capítulo 3 do livro de Rute. A história se parece com a de Tamar. Esta enganou
o sogro porque primeiramente este a tapeou, não fazendo seus filhos cumprirem a
lei do levirato (que obrigava o
cunhado a casar-se com a viúva de seu irmão e gerar filhos que pertenceriam à
genealogia deste – Dt 25,5-10). Também Rute era viúva, mas não tinha cunhado,
pois ambos os irmãos haviam morrido (Rt 1,3-5). Não ter herdeiros era sinal de
maldição entre os homens. Por sorte, havia um parente, uma pessoa importante da
família de Elimelec. Este homem era Booz (ou Boaz – Rt 2,1). E aí entra em ação o plano das duas mulheres
desamparadas. A lei do levirato era extensiva aos parentes mais próximos, caso
não houvesse um irmão para assumir o compromisso de dar uma linhagem ao
falecido. Assim como Tamar enganou o sogro Judá, fazendo-o acreditar que ela era
uma prostituta, Rute teve que manipular os acontecimentos. Embriagou Booz e deitou-se
com ele, que naquele momento pensava apenas estar desfrutando dos prazeres concedidos
por uma linda estrangeira (Rt 3,1-8). Quando soube, porém, que se deitara com a
viúva de um membro de seu clã, tentou passar a responsabilidade a outro. Este
recusou, para não prejudicar seus herdeiros (Rt 4,6). Booz não teve outra
alternativa, então, a não ser assumir as consequências por seu ato (Rt 4,9-10).
Na ótica machista, Tamar e Rute aplicaram um golpe. Se é verdade
que os fins não justificam os meios, por outro lado bem disse o filósofo Thoreau que, diante de governos tiranos
e leis injustas, só nos resta a desobediência civil. Se hoje juízes
mancomunados com o poder distorcem a letra, as mulheres empobrecidas da Bíblia não
ficam esperando a justiça (nem a humana, nem a divina) atuar “naturalmente”. Se
Jesus disse para sermos sábios como as serpentes (isto é, os escribas – Mt
10,16), é com inteligência que elas combatem o mal e lutam por seus direitos,
assumindo o protagonismo de suas vidas e forçando os acontecimentos a
desembocarem em sua libertação. Isso, por si só, já é motivo mais do que
suficiente para que estejam na genealogia de Jesus.
O presente momento é de repensar nossa caminhada. Que frutos
colhemos atualmente em nosso processo de resistência? Qual o papel das mulheres
nessa luta? Respeitamos seus espaços e lutamos, com elas, pela valorização,
conquista e/ou manutenção de seus direitos? Que direitos são estes?
Precisamos ouvi-las, empaticamente. Mateus escolhe cinco mulheres
em situações emblemáticas para nos lembrar disso. É nosso dever, portanto, admitir
no mínimo que, se elas dizem estar sendo oprimidas, estão, de fato, sendo
oprimidas. Não é vitimização dizerem que fulano, por mais respeitável que seja
nos círculos mais progressistas, libertários (como deveriam ser respeitáveis Judá
e Booz, no seu tempo), teve uma atitude machista com elas. É muito importante,
também, o resgate da memória, mostrar que a história não é feita somente de
homens. E mais: que elas estiveram presentes nos momentos cruciais (como ao pé
da cruz, por exemplo). Foi isso o que Mateus fez; é isso que devemos fazer. Não
descansemos, enfim, enquanto não conquistarmos, para todos e todas, a
felicidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário