Se tem uma coisa que precisa mudar (talkey!), é trabalhar nas escolas a
literatura contemporânea por último. Esta semana foi cheia de emoções e debates
interessantíssimos sobre a música de Chico Buarque e outras composições da
época da ditadura militar. Definitivamente, a juventude tem sede de saber sobre
seu passado, pelo menos o recente, aquele que se lhe aproxima mais.
Fugindo [pero no mucho] das
canções tradicionais (Apesar de Você,
Cálice, Geni e o Zepelim...), trabalhei os musicais “infantis”. Os
trabalhos selecionados foram Ciranda da
Bailarina (1983) e Piruetas (1981),
do Chico; e O Circo, de Sidney Miller
(1967).
De cara, as turmas perceberam, pelas datas, que as letras poderiam
conter “mensagens subliminares”. Mas não faziam uma ideia exata do que
descobririam. Grande foi sua surpresa ao fazer o exercício de interpretação dos
textos.
Comecei pela Bailarina. Essa
pessoa, sem defeitos, parece também não ter virtudes. Afinal, a música é
composta por uma série de negativas e nenhuma
afirmação sobre a protagonista.
E não tem coceira
Verruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
[...]
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem
Só para
realçar a importância dessa ausência de caracteres, notem a diferença em
relação à Geni (de Geni e o Zepelim -
1978), um travesti coberto de defeitos, mas que é quem, no fim das contas, salva
o dia.
Mas, de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
[...]
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai, Geni!
Vai com ele, vai, Geni!
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni!
Nossa “heroína”,
ao contrário, não salva ninguém. Não comete erros, tampouco acertos. Seus
passos são controlados, ensaiados, metódicos talvez, decorados com certeza. Não
faz nada, absolutamente nada além do que manda a coreografia, ou seja, sempre
dança conforme a música.
Em minha
pesquisa, nada encontrei que confirmasse o que estou prestes a dizer (o que não
surpreende, dado o aspecto apocalíptico das canções da época). Então avisei os
estudantes que tratassem como uma suposição apenas (alerta que também faço a
você) e comecei: Há quem afirme que bailarina
pode ter sido um código, nos tempos da ditadura, para se referir ao dedo-duro,
aquela pessoa que, para salvar a própria pele, entregava toda a rapaziada
(tomando uns tapas ou não).
É um tema um tanto controverso.
Como falei, faltam informações. O próprio Chico nada fala sobre isso. Todavia,
que não se trata de uma simples música infantil, atesta-o a própria letra.
Reparando
bem, todo mundo tem pentelho
Só
a bailarina que não tem
Chico provavelmente sabia que que
esse detalhe “íntimo” traria consequências. Era praticamente um recado: “Olha
só, pessoal! Quando virem um trabalho meu censurado, prestem bem atenção na
letra.” E que bailarina é um código
pode-se deduzir de sua recorrência nas canções de protesto, como a de Sidney Miller
(O Circo
- 1967):
Fala o fole da sanfona, fala a
flauta pequenina,
Que o melhor vai vir agora, que
desponta a bailarina.
Que o seu corpo é de senhora,
que seu rosto é de menina.
Quem
chorava já não chora, quem cantava desafina,
Porque a dança só termina quando a noite for embora.
Tendo os olhos treinados, pode-se
perceber aqui a relação entre a bailarina e a tortura. De fato, enquanto eu
escrevia esse texto, minha revisora preferida (minha esposa, historiadora) fez
outras pesquisas e encontrou o seguinte:
“Adolescentes
internados no Centro Socioeducativo (CSE) em Boa Vista [RR] sofrem,
cotidianamente, torturas como medida disciplinar dentro da unidade. É o que
aponta um relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
(MNPCT) apresentado nesta terça-feira (16) por Fernanda Giviez, perita do
órgão.
De acordo com a
perita, os internos chegam a passar 12 horas algemados em grades com as mãos
para cima e nas pontas dos pés. Esta é uma prática de tortura conhecida como ‘bailarina’.
[...]
Aqui é utilizada a ‘bailarina’,
que é uma prática de tortura utilizada durante a ditadura civil-militar no
Brasil.”
(Para ler na íntegra, clique aqui)
Voltando à música do Sidney
Miller, importa observar que a imagem do circo está intimamente relacionada às mais
terríveis práticas desumanas da ditadura. Caetano e Gil, por exemplo, batizaram
o primeiro álbum da Tropicália com o singelo nome Panis Et Circensis (1968). Essa – a velha máxima romana – era a
política dos militares: pão e circo. Na voz dos jovens da MPB, o entretenimento
popular virou código para a tortura. Saber disso dá outro significado à letra
da canção:
Vai, vai, vai começar a brincadeira.
Tem charanga tocando a noite inteira.
Vem, vem, vem ver o circo de verdade.
Tem, tem, tem
picadeiro e qualidade.
Bem me lembro o trapezista, que mortal
era seu salto,
Balançando lá no alto parecia de
brinquedo.
Mas fazia tanto medo que o Zezinho do
Trombone,
De renome consagrado, esquecia o próprio
nome
E abraçava o microfone
pra tocar o seu dobrado.
[...]
Vai, vai, vai terminar a
brincadeira.
Que a charanga tocou a noite
inteira.
Morre o circo, renasce na
lembrança.
Foi-se embora e eu ainda era criança.
O mesmo acontecendo com outras
músicas, de outros compositores, com a mesma temática. Vejamos outro exemplo, Piruetas de Chico Buarque (1981):
Dez mil
cambalhotas,
cem mil
cambalhotas,
Bravo!
Bravo!
Maxicambalhotas,
extracambalhotas,
Bravo!
Bravo!
Salta além
da estratosfera
e caia onde
cair,
Que a galera morre de rir!
Ai, minhas
costelas!
Já tô vendo
estrelas!
Bravo!
Bravo!
Ai, minha
cachola!
Não tô bom
da bola!
Bravo!
Bravo!
Lona...
nuvens...
Tomba no
hospital!
Uma pirueta,
uma cabriola,
Uma cambalhota,
não tô bom
da bola!
E o pessoal
delira...
Maxipirulito,
ultravioleta,
Bravo! Bravo!
Uma
educanda, depois disso, virou para mim e disse, brincando (ou não), que
estraguei sua infância. Juro que não era minha intenção, mas... Feitas as
devidas considerações, revimos as letras das músicas (convite que faço a você
também, deixando logo abaixo o link para ouvi-las) e deixei que cada um, cada
uma terminasse de analisá-las e tirasse suas próprias conclusões.
Dança da
Bailarina: https://www.youtube.com/watch?v=9QrNESnMsZQ
Obs.:
E aí? O que achou? A notícia vinculada a este texto é um fato isolado, ou
devemos nos preocupar com a possível atualidade deste tema?
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