E se? E se Jesus fosse mulher? Dizem que Deus – perfeito que é – não pode
ser limitado a nenhum conceito, dimensão ou categoria (como gênero, por
exemplo). Todavia, mesmo a visão mais amorosa do sagrado ainda é um Abba, paizinho.
Você sabia que um dos nomes de Deus, Shadday (Gn 17,1; 28,3; etc.), pode ter vindo da palavra hebraica Shad, “útero”? E que o Espírito de Deus,
que pairava sobre as águas (Gn 1,1), era uma entidade feminina: a Ruah? Toda representação feminina do
divino foi “esquecida” ou apagada intencionalmente (Shadday, por exemplo, foi traduzido por Todo-Poderoso).
Mas isso mudaria se Jesus fosse mulher? Olhando para o modo como os
discípulos trataram os relatos de mulheres que experimentaram a ressurreição, suspeito
de que a Nazarena não teria nem sido ouvida. Em Lucas, por exemplo, diziam os
discípulos de Emaús: “Bem é verdade que as mulheres nos deram um susto. Foram
ao túmulo e não encontraram o corpo. Alguns dos nossos foram e encontraram tudo
como elas haviam dito. Mas ninguém viu
Jesus.” (Lc 24,22-24)
Ah, mas isso era com a Madalena. Os evangelhos são praticamente unânimes
em dizer que foi ela a primeira a fazer a experiência do Cristo ressuscitado. Ora,
é senso comum dizer que ela era adúltera, pecadora, prostituta, endemoninhada. Em
um outro momento, podemos desmitificar a imagem dessa mulher, que foi
prostituída ao longo do tempo (leia, por exemplo, Jo 8 e perceba que não se diz
o nome da adúltera; logo, não deve ser Madalena). Mas agora vou propor outro
exercício. Pensemos em outra Maria, a mãe de Jesus. Um dia ela chegou para José
e disse que ia ser mãe, e o pai seria o Espírito Santo. Tranquilo, né!? Sussa...
Mas José intentou rejeitá-la por isso (Mt 1,18-19). Precisou de um ser dotado
de autoridade, isto é, de um anjo (entidade assexuada, assim como Deus; no
entanto, ambos são designados por substantivos masculinos) para dissuadi-lo
dessa ideia (Mt 1,20.24).
Admitamos: O fato é que, se Yeoshuá
fosse mulher, suas palavras não teriam sido sequer levadas em consideração, nem
ontem, nem hoje. Quantas pessoas devotas de Maria a veneram por sua célebre
frase: “[Deus] depôs os poderosos de seus tronos e os humildes exaltou”? (Lc
1,52) Não é a tônica mariana crer na santa como intercessora apenas, como
aquela cuja função seria – única e exclusivamente – facilitar o acesso junto a
seu filho?
Para enfatizar o rebaixamento
de Cristo à condição humana, Paulo o chama de nascido de uma mulher (Gl 4,4). Essa expressão é usada em outros
textos bíblicos e parece ser pejorativa (cf. Jó 14,1; 15,14; Lc 7,28).
Entretanto, convém destacar os dois cânticos de Lc 1: o de Maria (vv. 46-56) e
o do Zacarias (vv. 67-79). Enquanto o menino (isto é, o projeto) que nasce das
elites (seu pai é sacerdote) é, no máximo, um sinal (o que aponta para o Messias), o que nasce de uma menina pobre subverte as
estruturas (“cumulou de bens os famintos
e despediu os ricos de mãos vazias”). Para além da oposição ricos x pobres, tracemos outro paralelo:
Existe, sim, uma via de salvação para quem acredita na lógica do Templo, mas somente
o rompimento com o sistema patriarcal gera a verdadeira mudança.
Se pensarmos na recente disputa pelo poder, veremos muita gente de
esquerda – eu mesmo, durante um bom tempo – sentindo-se derrotada pelo
resultado das urnas. Ora, nossa derrota já começou na escolha da solução para
os nossos problemas. O patriarca Bolsonaro venceu porque o patriarca Lula não
pôde concorrer. O sistema que aí está não permite uma verdadeira revolução. O
que mudou, efetivamente, nos 13 anos do PT no poder? O povo podia consumir mais. Importante benefício para
a população, mas que em nada mudou a cultura exploratória do meio ambiente e
depredatória de recursos naturais e finitos. A proposta, de fato, alimentou e
vestiu muito mais gente do que nos governos anteriores, especialmente os
pobres, mas nada tinha de sustentável, ecológica e economicamente, a longo
prazo.
O que acabo de dizer está longe de ser um discurso conformista, ou uma
rendição ao novo governo. Nada de torcer para que dê certo um projeto que não
esconde de ninguém suas intenções elitistas, excludentes, homofóbicas,
misóginas, racistas... É inegável que o prejuízo será infinitamente maior com a
ascensão de um homem cujo discurso desperta nas pessoas o que elas têm de pior.
Antes, o que quero discutir é a estratégia de resistência. Queríamos a eleição
do (patriarca) Ciro ou Haddad por acreditar numa maior abertura para debater as
necessidades do povo. Isso não podemos perder de vista! O sistema é injusto por
si só, independente de quem assuma o poder, homem ou mulher. Como promoveremos
a verdadeira paz (Jo 14,27), como alcançaremos a terra sem males, onde “corre leite e mel” (Ex 3,8), se continuamos
a acreditar no sistema baseado no macho salvador
da pátria?
Talvez seja impossível dizer agora o que fazer. Mas é possível perceber
o que NÃO fazer. O papel da resistência não é, de forma
alguma, submeter-se ao sistema. Ele é o problema. Seus princípios são o
problema. Sua lógica funciona da mesma forma, independente da posição política
de quem ocupa o cargo mais alto. Basta lembrarmos do Lula dizendo que das tais
alianças (com praticamente toda a nata do patriarcado brasileiro) dependia a
governabilidade do país (e o final dessa história conhecemos muito bem!). A
derrota foi dura, doída, sim, mas pode significar um renascer, a assunção de um
projeto de vida, centrado no amor, algo que definitivamente o patriarcalismo
não pode nos dar.
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