domingo, 18 de novembro de 2018

O FRUTO DO VOSSO VENTRE


E se? E se Jesus fosse mulher? Dizem que Deus – perfeito que é – não pode ser limitado a nenhum conceito, dimensão ou categoria (como gênero, por exemplo). Todavia, mesmo a visão mais amorosa do sagrado ainda é um Abba, paizinho.
Você sabia que um dos nomes de Deus, Shadday (Gn 17,1; 28,3; etc.), pode ter vindo da palavra hebraica Shad, “útero”? E que o Espírito de Deus, que pairava sobre as águas (Gn 1,1), era uma entidade feminina: a Ruah? Toda representação feminina do divino foi “esquecida” ou apagada intencionalmente (Shadday, por exemplo, foi traduzido por Todo-Poderoso).
Mas isso mudaria se Jesus fosse mulher? Olhando para o modo como os discípulos trataram os relatos de mulheres que experimentaram a ressurreição, suspeito de que a Nazarena não teria nem sido ouvida. Em Lucas, por exemplo, diziam os discípulos de Emaús: “Bem é verdade que as mulheres nos deram um susto. Foram ao túmulo e não encontraram o corpo. Alguns dos nossos foram e encontraram tudo como elas haviam dito. Mas ninguém viu Jesus.” (Lc 24,22-24)
Ah, mas isso era com a Madalena. Os evangelhos são praticamente unânimes em dizer que foi ela a primeira a fazer a experiência do Cristo ressuscitado. Ora, é senso comum dizer que ela era adúltera, pecadora, prostituta, endemoninhada. Em um outro momento, podemos desmitificar a imagem dessa mulher, que foi prostituída ao longo do tempo (leia, por exemplo, Jo 8 e perceba que não se diz o nome da adúltera; logo, não deve ser Madalena). Mas agora vou propor outro exercício. Pensemos em outra Maria, a mãe de Jesus. Um dia ela chegou para José e disse que ia ser mãe, e o pai seria o Espírito Santo. Tranquilo, né!? Sussa... Mas José intentou rejeitá-la por isso (Mt 1,18-19). Precisou de um ser dotado de autoridade, isto é, de um anjo (entidade assexuada, assim como Deus; no entanto, ambos são designados por substantivos masculinos) para dissuadi-lo dessa ideia (Mt 1,20.24).
Admitamos: O fato é que, se Yeoshuá fosse mulher, suas palavras não teriam sido sequer levadas em consideração, nem ontem, nem hoje. Quantas pessoas devotas de Maria a veneram por sua célebre frase: “[Deus] depôs os poderosos de seus tronos e os humildes exaltou”? (Lc 1,52) Não é a tônica mariana crer na santa como intercessora apenas, como aquela cuja função seria – única e exclusivamente – facilitar o acesso junto a seu filho?
Para enfatizar o rebaixamento de Cristo à condição humana, Paulo o chama de nascido de uma mulher (Gl 4,4). Essa expressão é usada em outros textos bíblicos e parece ser pejorativa (cf. Jó 14,1; 15,14; Lc 7,28). Entretanto, convém destacar os dois cânticos de Lc 1: o de Maria (vv. 46-56) e o do Zacarias (vv. 67-79). Enquanto o menino (isto é, o projeto) que nasce das elites (seu pai é sacerdote) é, no máximo, um sinal (o que aponta para o Messias), o que nasce de uma menina pobre subverte as estruturas (“cumulou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias”). Para além da oposição ricos x pobres, tracemos outro paralelo: Existe, sim, uma via de salvação para quem acredita na lógica do Templo, mas somente o rompimento com o sistema patriarcal gera a verdadeira mudança.
Se pensarmos na recente disputa pelo poder, veremos muita gente de esquerda – eu mesmo, durante um bom tempo – sentindo-se derrotada pelo resultado das urnas. Ora, nossa derrota já começou na escolha da solução para os nossos problemas. O patriarca Bolsonaro venceu porque o patriarca Lula não pôde concorrer. O sistema que aí está não permite uma verdadeira revolução. O que mudou, efetivamente, nos 13 anos do PT no poder? O povo podia consumir mais. Importante benefício para a população, mas que em nada mudou a cultura exploratória do meio ambiente e depredatória de recursos naturais e finitos. A proposta, de fato, alimentou e vestiu muito mais gente do que nos governos anteriores, especialmente os pobres, mas nada tinha de sustentável, ecológica e economicamente, a longo prazo.
O que acabo de dizer está longe de ser um discurso conformista, ou uma rendição ao novo governo. Nada de torcer para que dê certo um projeto que não esconde de ninguém suas intenções elitistas, excludentes, homofóbicas, misóginas, racistas... É inegável que o prejuízo será infinitamente maior com a ascensão de um homem cujo discurso desperta nas pessoas o que elas têm de pior. Antes, o que quero discutir é a estratégia de resistência. Queríamos a eleição do (patriarca) Ciro ou Haddad por acreditar numa maior abertura para debater as necessidades do povo. Isso não podemos perder de vista! O sistema é injusto por si só, independente de quem assuma o poder, homem ou mulher. Como promoveremos a verdadeira paz (Jo 14,27), como alcançaremos a terra sem males, onde “corre leite e mel” (Ex 3,8), se continuamos a acreditar no sistema baseado no macho salvador da pátria?
Talvez seja impossível dizer agora o que fazer. Mas é possível perceber o que NÃO fazer. O papel da resistência não é, de forma alguma, submeter-se ao sistema. Ele é o problema. Seus princípios são o problema. Sua lógica funciona da mesma forma, independente da posição política de quem ocupa o cargo mais alto. Basta lembrarmos do Lula dizendo que das tais alianças (com praticamente toda a nata do patriarcado brasileiro) dependia a governabilidade do país (e o final dessa história conhecemos muito bem!). A derrota foi dura, doída, sim, mas pode significar um renascer, a assunção de um projeto de vida, centrado no amor, algo que definitivamente o patriarcalismo não pode nos dar.

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