quinta-feira, 14 de setembro de 2017

TESSALÔNICA, A REFORMA E A ALA DOS ORFANADOS

A primeira carta aos tessalonicenses bem se podia chamar o manifesto de carinho da grande família. A mesma comunidade missionária (Paulo, Silvano e Timóteo) que chama seus destinatários de irmãos logo no começo (1Ts 1,4), coloca-se como mãe (v. 7b) e pai (v. 11) deles no capítulo 2. Como autênticas filhas e filhos, é aquela gente chamada de “nossa glória e nossa alegria” (1Ts 2,20). Quem os “elegeu” como família foi um Deus que é Pai (1Ts 1,1.3; 3,11.13), tornando-os irmãos e irmãs em seu Filho, Jesus (1Ts 1,10).
Essa linda história lembra um filme, Francesco, em que o santo de Assis apresentava a cada novo membro da ordem seus novos irmãos, irmãs, pais, mães, filhos e filhas, aos quais o noviço deveria se recomendar e cuidar como a uma família. Por outro lado, lembra também um lar para crianças, muito comum nas guerras, mas também presente em nossos dias: o orfanato. Aqueles jovens e crianças não têm mais ninguém na terra, a não ser uns aos outros. Ele próprio, Francisco, tornou-se órfão de pai vivo quando renunciou a tudo, inclusive às vestes do próprio corpo. Quem o seguia também era um orfanado (ou depois, com as clarissas, orfanada), renunciando a tudo para abraçar sua nova parentela.
Mas o que histórias tão tristes têm a ver com o manifesto de amor aos tessalonicenses? Curioso, primeiramente, notar que, em 1Ts 2,17, a comunidade paulina diz assim: “Ora, nós, irmãos, orfanados por breve tempo de vossa presença…” Algumas traduções podem trazer “separados”, “privados”, mas o termo grego é aporphanizu, “tornado órfão”. O sentimento, portanto, é de separação brusca do seio familiar. Em Lc 12,51-53, Jesus diz assim: “Pensais que vim estabelecer paz na terra? Não, eu vos digo; antes, divisão. Porque, daqui em diante, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três. Estarão divididos: pai contra filho, filho contra pai; mãe contra filha, filha contra mãe; sogra contra nora, e nora contra sogra.” E adiante, em Lc 14,26: “Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.” Palavras difíceis, que pouco parecem combinar com a imagem de um Deus afável que os evangelhos tentam transmitir. Ou estamos diante de um Jesus em seu dia de fúria, ou – o mais provável – isso era o que estava acontecendo nas comunidades.
O evangelho de Lucas é escrito por volta de 85 a 90 d.C., praticamente 40 anos depois da carta comunitária aos tessalonicenses. O texto tem paralelo somente no Evangelho de Mateus (10,34-37). O que eles têm em comum? São escritos praticamente na mesma época e na diáspora, isto é, em cidades do mundo greco-romano, fora de Israel. O templo e a cidade sagrada, Jerusalém, já tinham sido destruídos há quase vinte anos. Os cristãos e cristãs, considerados os verdadeiros culpados pela catástrofe, foram expulsos das sinagogas. Seus parentes “não-convertidos”, porém, continuavam frequentando as comunidades judaicas. Quem tem um tio ou uma prima neo-convertidos em casa deve saber como ficam os ânimos nestes casos. Só que lá a situação foi potencializada, devido ao desfecho trágico dos acontecimentos.
A destruição de Jerusalém, entretanto, não explica, por si só, essas animosidades. Ainda que os evangelhos fossem já uma releitura das palavras e gestos de Jesus (imagine-se contando uma história vivida por sua avó, antes mesmo de sua mãe ou seu pai terem nascido), é possível que, já em vida, Ele e sua comunidade (seguidoras e seguidores) tenham sido perseguidos por familiares consanguíneos. Como explicar, por exemplo, que o Cristo tenha evitado seus parentes quando soube que estes o procuravam? “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Podemos aceitar que isso não tenha acontecido de verdade, que, embora o texto se encontre também em Mateus (12,49-50) e Marcos (3,34-35), trata-se de mais uma fábula para tranquilizar a quem, por aderir à “Seita do Nazareno”, se indispôs com a própria mãe. Mas, e a carta aos tessalonicenses, escrita por volta do ano 50 da E.C. (Era Comum)?
Mais fácil sabermos o que aconteceu da virada do milênio para cá do que nos porões da ditadura, não é verdade!? E não é só pela facilidade de informações que temos hoje. Feridas de 20 anos ainda estão recentes e são mais facilmente identificáveis que as de 60 anos. Nesse sentido, o afastamento de Paulo e seus companheiros de um ambiente que transbordava amor é o melhor comprovante de que esse rompimento histórico se deu já nas origens. A carta, escrita 20 anos antes da destruição do templo, conta como, naquela época, já havia grupos judaizantes que perseguiam os cristãos: “[os judeus] não somente mataram o Senhor Jesus e os profetas, como também nos perseguiram, e não agradam a Deus, e são adversários de toda gente, a ponto de nos impedirem de falar aos gentios…” (1Ts 2,15-16). Tal relato atesta, inclusive, os acontecimentos da segunda viagem paulina narrados em At 16-18.
Discute-se o tom antissemítico da carta. Parece que seria uma glosa, por destoar de outros textos paulinos. Não nos esqueçamos, porém, que ela foi escrita no calor do momento. Paulo e sua equipe acabavam de ser expulsos, consecutivamente e pelo mesmo grupo, de Tessalônica (At 17,10) e Bereia (At 17,13). Nesta, a bem da verdade, foram encontrados judeus (e mulheres – v. 12) mais nobres, assim como em Corinto (At 18,1-2 – os missionários são acolhidos por um casal judeu). Mas a raiva com os de Tessalônica devia ser tão grande que Paulo os chamou de Satanás (1Ts 2,18) e Tentador (1Ts 3,5).
Perfeitamente compreensível. Ainda hoje, após 500 anos da revolução causada pelas 59 teses de Martinho Lutero, os luteranos continuam sendo chamados, por alguns grupos até bem intencionados (tanto quanto eram os judeus tessalonicenses), de separados. O próprio termo “protestante” coloca-os em contraposição a uma religião “oficial”. Felizmente, a visita do papa Francisco à Suécia, ano passado, já é sinal de que os ventos estão mudando. Pela primeira vez, em tom de respeito e diálogo, prepara-se uma celebração conjunta por um dos centenários – o quinto, no caso – da Reforma. Lá o papa disse que a culpa da divisão entre luteranos e católicos é dos poderosos, que essa não é a vontade do povo fiel[1]. Na Igreja Luterana de Roma, este ano, foi mais específico[2]: “Por detrás dos muros humanos existe uma fantasia: [...] se tornar como Deus! Para mim, [...] a narração da Torre de Babel, é precisamente a atitude do homem e da mulher que levantam muros, porque erguer um muro é dizer: ‘Nós somos os poderosos; vós, fora!’. [Nisto] estão a soberba do poder e a atitude proposta nas primeiras páginas do Gênesis: ‘Sereis como Deus’ (cf. Gn 3, 5). Erigem-se muros para excluir; caminha-se neste rumo.” A comunidade católica mais nobre acolhe e vibra com essa boa nova. Já o grupo de Satanás (literalmente, “adversário, opositor”)...
Os pobres, de fato, parecem não se importar muito com essas divisões. A considerar o que diz 1Ts 4,11 sobre o povo trabalhar com as próprias mãos, podemos dizer que se tratava de uma comunidade de gente simples. Como simples foi o motivo que levou a equipe missionária a escrever a carta. Por intermédio de Timóteo, aquela comunidade humilde manifestou uma preocupação bem existencial: quando e como se dará a Parusia? Isto é, o que vai acontecer com nossos mortos quando o Messias voltar? E aqueles que nem conheceram a mensagem do Evangelho? Terão lugar garantido na nova Terra? E quem não se converteu? Vou voltar a ver minha avozinha? Aliás, quando Ele vai voltar? Já faz 20 anos que se foi... Cadê? A resposta mostra como o texto é antigo, talvez o mais antigo do Segundo Testamento. Aqui temos um Paulo que ainda acredita numa volta mágica e majestosa de Jesus. Ele diz algo do tipo: aguentem mais um pouquinho! Ele já deve estar chegando! Quando chegar, chamará os mortos primeiro! Mas depois seremos nós... Bem diferente da visão de Atos 1,9-11 – “Ele já voltou!” – e de 1Cor 11 – “Isto é o meu corpo... Isto é o meu sangue... Fazei isto em memória de mim!
Mas o importante, apesar da visão ingênua em 1Ts, é o que Paulo diz a seguir (5,12): “Agora vos rogamos, irmãos, que tenhais apreço por aqueles que se afadigam no meio de vós.” Muito bonito estar preocupado com a vó, que já se foi. Mas lutemos, agora, pelas pessoas que ainda vivem, oprimidas por um sistema injusto que nos divide, independente de sermos católicos, espíritas, candomblecistas, xamanistas, budistas ou ateus, em exploradores e explorados. A denúncia do papa Francisco se estende a todas as divisões, ou melhor, às desigualdades, que são causadas sempre pela mesma elite, em todos os campos da sociedade (dos quais o religioso é só mais um), motivada pela sede de poder. Desmascaremos esse modelo econômico, político e social e celebremos, a exemplo do que agora fazem católicos e luteranos, a oikoumene, isto é, a casa comum, casa de todas e de todos, independente de credo, cor, sexo, idade, localização geográfica. Amém, Axé, Awere, Aleluia!




[1] Cf. https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2016/documents/papa-francesco_20161031_omelia-svezia-lund.html. Acesso em: 14/09/2017.
[2] Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/november/documents/papa-francesco_20151115_chiesa-evangelica-luterana.html. Acesso em: 14/09/2017.