quinta-feira, 11 de junho de 2020

PÃO OU CARNE? QUE IMPORTA!

A festa de hoje é uma das mais controversas do mundo cristão. Nesses dias em que a divisão só fortalece os fascistas, fazer memória de um milagre que sugere a “supremacia” de uma religião sobre outras parece incoerente, se não for conivente com os opressores. Então que tal fazer uma releitura do evangelho de Corpus Christi (Jo 6,51-58)?

A eucaristia sempre foi um dos pontos mais controversos da discussão entre católicos conservadores e progressistas. O que o isolamento imposto pela pandemia fez foi acirrar ainda mais o conflito. Os primeiros, repentinamente, “lembraram” o aspecto comunitário da comunhão. De fato, é o único momento da celebração que precisa do encontro presencial entre quem ministra e quem come a ceia. O ponto principal da controvérsia, porém, ficou em segundo plano. Mas parece que temos tempo suficiente, nesta quarentena, para refletir: A luta é pelo direito de quem comungar?

Referente ao texto de João. A discussão começa bem antes do recorte oferecido pela liturgia. O cenário completo ocupa todo o capítulo 6. Da partilha milagrosa dos pães (vv. 1-15) passa-se à cena de Jesus caminhando por sobre as águas (vv. 16-21 – curiosamente, houve quem, no dia seguinte, pedisse-lhe sinais) e, depois disso, um grande debate, que termina com muitos discípulos escandalizados e abandonando o mestre (vv. 60-66), uma profissão de fé dos apóstolos (vv. 67-69) e um final que revela um líder sofrendo a dor do abandono (vv. 67-71). Ou seja, a grande revelação de Cristo – “Eu sou o pão da vida!” (v. 35) – não trouxe alegria e conforto ao coração de seus seguidores, mas incompreensão, medo, divisão, fuga e constrangimento.

Ora, o que causou esse desencontro? Até ali, muitos seguiam o Mestre. O que os afastou? O desejo de poder e a falta de empatia. Desde o início, queriam controlar Jesus. No v. 15, tentaram “arrebatá-lo” para torná-lo rei. Vendo que não podem controlá-lo, os discípulos procuram dispensá-lo, colocá-lo em segundo plano, agindo por conta própria (episódio do barco). Lembremos que, num texto paralelo (Mt 14,22-33), Pedro procura mostrar-se igual ao Nazareno (e literalmente afunda tentando). Cientes de que não conseguem enquadrá-lo, então buscam garantir-se por suas próprias ações: “Que faremos para realizar as obras de Deus (e alcançarmos a vida eterna)?” (v. 28). A resposta: “Acreditem em mim (em vez de tentar me controlar)!” É então que lhe pedem um sinal (ainda uma tentativa de dar as cartas, ditas as regras). E aí vem a história do Pão do Céu (vv. 33-35). Os fariseus usam, então, uma tática conhecida hoje como “envenenando o poço”: “Que pão do céu o quê? Esse aí é o filho do José!” (v. 42). É neste momento que Jesus sobe o tom: “comam a minha carne” (v. 51), “bebam meu sangue” (v. 53).

A partir disso, muitos se escandalizam e deixam de seguir a Cristo. Meu palpite: eles entenderam exatamente cada palavra do Messias. Comer a carne, beber o sangue significava ter o mesmo destino que seu Mestre. Importante saber que o evangelho de João é escrito décadas após sua morte e ressurreição. Quem lia, naquele momento, identificava os irmãos e irmãs na fé que recuaram diante das provações. Era um tempo de perseguição. Quem insistisse no “Caminho” chegaria inevitavelmente na Cruz. É nesse contexto que quem permaneceu fiel – os apóstolos – reconhece nas “palavras de vida eterna” um motivo para prosseguir. Lembremos que João começa seu evangelho dizendo que, no princípio, era a Palavra, e a Palavra se fez carne, e por ela tudo se fez... Ou seja, não é qualquer palavra, mas a Palavra que leva os fiéis à “criação” de um mundo.

Comer o pão, em si, não significa nada. Ter assegurado o direito de comungar não vale nada se o critério for pertencer ao seleto grupo dos “santos e santas” de Deus. Vale lembrar que, instantes depois, Jesus aparenta desprezar a carne: “O espírito vivifica...” (v. 63). Ou seja, a verdadeira comunhão não é a matéria em si, mas o Espírito que a transforma em Palavra criadora. Comungá-la não está atrelado a complexas regras de quem pode ou não pode, mas ao efeito que ela deve causar em quem nela acredita.

Quando penso que, hoje, uma parcela considerável do mundo cristão comemora a “posse” do corpo e sangue de Cristo, fico pensando: e as outras denominações? E os não-cristãos? Ter a hóstia não deveria ser sinal de privilégio, mas de serviço. Estar a serviço da Palavra criadora: isso é que importa! Estar a serviço do próximo, seja quem for o próximo (lembremos que “havia outras barcas com eles” [v. 23]). Estar a serviço da vida!

E só pra concluir: Se hoje há vidas indefesas, elas importam, sim! Mais que as outras? Não! Nem menos! Uma historinha de internet conta que dois rapazes estavam diante de uma casa em chamas. Um deles resolveu ajudar. Então rolou o seguinte diálogo:

— Ei, e a minha casa? Por que você não vem à minha casa?

— Ela também está em chamas?

— Não!

— Então venha! Precisamos ajudar esta aqui!

— Peraí! Você está dizendo que a minha casa não importa?

Quem, neste momento, alega que afirmar a importância das vidas negras é menosprezar as outras vidas, ou não entendeu a realidade que o cerca, ou está sendo egoísta. Quem comunga deveria entender a diferença...

terça-feira, 9 de junho de 2020

COMO CRIAR UMA JUVENTUDE FASCISTA

Semaninha puxada e decisiva para as minhas pretensões de doutorado. A pandemia e a implementação do novo currículo nas escolas do RS estão pondo meu projeto em cheque. Então é hora de requentar um artigo que publiquei para o PTP (Por trás da Palavra - revista do CEBI). O texto é de antes das eleições de 2018. Será que mudou alguma coisa, desde então?

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COMO CRIAR UMA JUVENTUDE FASCISTA

A mesma geração que, não faz muito tempo, reclamava “dessa juventude que não quer nada com nada”, teme agora ser decisiva, netas eleições, a adesão de tantas pessoas jovens ao projeto político de um líder autoritário que flerta abertamente com o fascismo. Ora, o mais curioso é que não se espantem com sua própria contradição: como podem temer a influência de uma parcela do povo tão desinteressada nos rumos da nação?

Pode-se objetar: é justamente por serem apáticos que foram facilmente cooptados. A verdade, porém, é que são inúmeros os grupos juvenis organizados, do Levante Popular ao MBL, passando pelas mais diferentes expressões sociais (político-partidárias, religiosas, estudantis, esportivas, outras agremiações, etc.), tanto à esquerda quanto à direita. Podem não representar a maioria do eleitorado jovem, mas servem como exemplo definitivo de que não estamos diante de uma geração indiferente ao que acontece ao seu redor.

Mas é possível ver alguém que ainda insiste: a maioria dos jovens está alienada, não participa de nada e, por isso, é facilmente manipulada. Justiça seja feita, primeiro: o número de pessoas pertencentes à massa desorganizada é predominante na população em geral; segundo: as pesquisas eleitorais indicam que esta é a faixa etária onde se encontra o menor percentual de eleitoras e eleitores do candidato do PSL. Admitindo, porém, que o percentual entre jovens seja alto, a pergunta, diante desse quadro, deveria ser: Por que são os discursos de intolerância e ódio – e não os de paz e amor – que soam como o canto da sereia em ouvidos tão incautos?

Sem pretender dar conta do problema em sua totalidade – até porque o objetivo desta reflexão é priorizar o recorte juvenil –, talvez um olhar para o passado nos traga algumas respostas. O jornalista inglês Jon Savage escreveu um livro cujo título em português é A Criação da Juventude (2009). No capítulo 18, dedicado à juventude hitleriana, podemos ler o depoimento de uma mulher alemã, Melita Maschmann, que com 15 anos de idade presenciou (em 30 de janeiro de 1933) o desfile de indicação de Adolf Hitler para chanceler do Reich. Ela começa nos situando sobre sua realidade de adolescente: “Naquela idade, a gente vê uma vida de deveres escolares, passeios com a família e convites para aniversários deploravelmente vazia de significado. Não se dá crédito a ninguém por estar interessado em mais do que essas ridículas trivialidades. Ninguém diz: ‘você é necessário para algo mais importante, venha!’ Quando se trata de assuntos sérios, a gente nem conta.” Constato, como professor de rede pública, que essa é também a realidade de nossos estudantes.

Continuando, ela afirma: “Mas os meninos e meninas das colunas em marcha contavam. Como os adultos, eles carregavam estandartes onde estavam escritos os nomes dos seus mortos.” Os jovens cantavam: “Pela bandeira estávamos prontos para morrer”. Segundo Melita: “Não era uma questão de roupas, alimento ou redações escolares, mas de vida e morte”. De acordo com Savage: “O ingresso na Juventude Hitlerista dava aos adolescentes sem objetivo da Alemanha um propósito na vida e poder contra seus pais, que estavam, provavelmente, identificados com a desprezada República de Weimar.” (p. 279). Falta de objetivos (não querem nada com nada?) e conflito geracional, combustíveis para a manipulação das massas, recurso que o Führer soube utilizar habilmente – e Savage, ao demonstrar isso, foi muito feliz, indo ao cerne do problema: “Como os fascisti de Mussolini, os nazistas subiram ao poder evocando uma abstração de juventude como um agente vivo de mudança e realmente mobilizando os jovens por meio da mística do conflito, ação e pertencimento.” (p. 279 – os grifos são meus)

O discurso de Hitler, em janeiro de 1933, foi realmente incendiário: “Estou começando com os jovens. Nós que somos mais velhos estamos desgastados. Estamos apodrecidos até a medula. Não nos resta nenhum instinto incontrolável. Somos covardes e sentimentais. Estamos carregando o peso de um passado humilhante e temos no nosso sangue o melancólico reflexo da servidão e da subserviência. Mas os meus magníficos jovens! Existem melhores em algum outro lugar do mundo? Vejam estes rapazes e meninos! Que material! Com eles eu posso construir um novo mundo.” Impressionante a semelhança com as falas do candidato militarista brasileiro: vergonha do passado, história de escravidão e subserviência, hora da virada...

Lendo tudo isso, não consigo deixar de pensar no povo aclamando Davi porque este matara dez mil, enquanto o rei Saul, somente mil (1 Sm 18,7). E o que aquele fez, depois de coroado? Tornou-se um tirano, capaz de eliminar até mesmo seus aliados. Por exemplo, não contente com suas sete esposas, mandou matar (em nome da família tradicional?) o general Urias para ficar com sua mulher, Betsabeia, futura mãe de Salomão. Mesmo demonstrando a crueldade dessa ação real, a Bíblia foi favorável ao filho de Jessé, demonstrando como o povo o amava e o quanto era querido por Deus, que prometeu gerar o Messias de sua linhagem.

Davi, Hitler e Bolsonaro cativaram seus súditos com um discurso enérgico, patriótico, triunfalista e – pasmem! – inclusivo. Embora não dessem aos seguidores o direito de pensar, seduziram-nos dizendo-lhes o que queriam ouvir. Ora, sabemos que isso é alienação. Mas existe um modo de falar ao coração das pessoas sem manipulá-las. Quando Moisés foi chamado por Javé, este deixou bem claro que o enviava para atender ao clamor do povo (Ex 3,1-10). Deus foi enfático: “eu ouvi o seu clamor!” (v. 7b). Como propor aos jovens um mundo de paz e vida em plenitude? Que tal se, em vez de dizer-lhes o que devem querer, começássemos por ouvir os seus clamores? Muitos são os motivos para aderirem ao discurso de ódio, mas o principal deles é não se sentirem incluídos em nossos projetos de um mundo melhor.

 

REFERÊNCIAS

SAVAGE, Jon: Os Soldados de uma Ideia: A Juventude Hitleriana. In: ______: A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Tradução: Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 277-298.

Bíblia de Jerusalém: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.

 

SÍTIOS

https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/15/rejeicao-a-bolsonaro-chega-a-56-entre-os-jovens-aponta-datafolha.htm. Acesso em: 24/10/2018.

http://datafolha.folha.uol.com.br/eleicoes/2018/10/1983182-com-58-bolsonaro-larga-com-vantagem-de-16-pontos-no-2-turno.shtml. Acesso em: 24/10/2018.