terça-feira, 9 de junho de 2020

COMO CRIAR UMA JUVENTUDE FASCISTA

Semaninha puxada e decisiva para as minhas pretensões de doutorado. A pandemia e a implementação do novo currículo nas escolas do RS estão pondo meu projeto em cheque. Então é hora de requentar um artigo que publiquei para o PTP (Por trás da Palavra - revista do CEBI). O texto é de antes das eleições de 2018. Será que mudou alguma coisa, desde então?

------------------------

COMO CRIAR UMA JUVENTUDE FASCISTA

A mesma geração que, não faz muito tempo, reclamava “dessa juventude que não quer nada com nada”, teme agora ser decisiva, netas eleições, a adesão de tantas pessoas jovens ao projeto político de um líder autoritário que flerta abertamente com o fascismo. Ora, o mais curioso é que não se espantem com sua própria contradição: como podem temer a influência de uma parcela do povo tão desinteressada nos rumos da nação?

Pode-se objetar: é justamente por serem apáticos que foram facilmente cooptados. A verdade, porém, é que são inúmeros os grupos juvenis organizados, do Levante Popular ao MBL, passando pelas mais diferentes expressões sociais (político-partidárias, religiosas, estudantis, esportivas, outras agremiações, etc.), tanto à esquerda quanto à direita. Podem não representar a maioria do eleitorado jovem, mas servem como exemplo definitivo de que não estamos diante de uma geração indiferente ao que acontece ao seu redor.

Mas é possível ver alguém que ainda insiste: a maioria dos jovens está alienada, não participa de nada e, por isso, é facilmente manipulada. Justiça seja feita, primeiro: o número de pessoas pertencentes à massa desorganizada é predominante na população em geral; segundo: as pesquisas eleitorais indicam que esta é a faixa etária onde se encontra o menor percentual de eleitoras e eleitores do candidato do PSL. Admitindo, porém, que o percentual entre jovens seja alto, a pergunta, diante desse quadro, deveria ser: Por que são os discursos de intolerância e ódio – e não os de paz e amor – que soam como o canto da sereia em ouvidos tão incautos?

Sem pretender dar conta do problema em sua totalidade – até porque o objetivo desta reflexão é priorizar o recorte juvenil –, talvez um olhar para o passado nos traga algumas respostas. O jornalista inglês Jon Savage escreveu um livro cujo título em português é A Criação da Juventude (2009). No capítulo 18, dedicado à juventude hitleriana, podemos ler o depoimento de uma mulher alemã, Melita Maschmann, que com 15 anos de idade presenciou (em 30 de janeiro de 1933) o desfile de indicação de Adolf Hitler para chanceler do Reich. Ela começa nos situando sobre sua realidade de adolescente: “Naquela idade, a gente vê uma vida de deveres escolares, passeios com a família e convites para aniversários deploravelmente vazia de significado. Não se dá crédito a ninguém por estar interessado em mais do que essas ridículas trivialidades. Ninguém diz: ‘você é necessário para algo mais importante, venha!’ Quando se trata de assuntos sérios, a gente nem conta.” Constato, como professor de rede pública, que essa é também a realidade de nossos estudantes.

Continuando, ela afirma: “Mas os meninos e meninas das colunas em marcha contavam. Como os adultos, eles carregavam estandartes onde estavam escritos os nomes dos seus mortos.” Os jovens cantavam: “Pela bandeira estávamos prontos para morrer”. Segundo Melita: “Não era uma questão de roupas, alimento ou redações escolares, mas de vida e morte”. De acordo com Savage: “O ingresso na Juventude Hitlerista dava aos adolescentes sem objetivo da Alemanha um propósito na vida e poder contra seus pais, que estavam, provavelmente, identificados com a desprezada República de Weimar.” (p. 279). Falta de objetivos (não querem nada com nada?) e conflito geracional, combustíveis para a manipulação das massas, recurso que o Führer soube utilizar habilmente – e Savage, ao demonstrar isso, foi muito feliz, indo ao cerne do problema: “Como os fascisti de Mussolini, os nazistas subiram ao poder evocando uma abstração de juventude como um agente vivo de mudança e realmente mobilizando os jovens por meio da mística do conflito, ação e pertencimento.” (p. 279 – os grifos são meus)

O discurso de Hitler, em janeiro de 1933, foi realmente incendiário: “Estou começando com os jovens. Nós que somos mais velhos estamos desgastados. Estamos apodrecidos até a medula. Não nos resta nenhum instinto incontrolável. Somos covardes e sentimentais. Estamos carregando o peso de um passado humilhante e temos no nosso sangue o melancólico reflexo da servidão e da subserviência. Mas os meus magníficos jovens! Existem melhores em algum outro lugar do mundo? Vejam estes rapazes e meninos! Que material! Com eles eu posso construir um novo mundo.” Impressionante a semelhança com as falas do candidato militarista brasileiro: vergonha do passado, história de escravidão e subserviência, hora da virada...

Lendo tudo isso, não consigo deixar de pensar no povo aclamando Davi porque este matara dez mil, enquanto o rei Saul, somente mil (1 Sm 18,7). E o que aquele fez, depois de coroado? Tornou-se um tirano, capaz de eliminar até mesmo seus aliados. Por exemplo, não contente com suas sete esposas, mandou matar (em nome da família tradicional?) o general Urias para ficar com sua mulher, Betsabeia, futura mãe de Salomão. Mesmo demonstrando a crueldade dessa ação real, a Bíblia foi favorável ao filho de Jessé, demonstrando como o povo o amava e o quanto era querido por Deus, que prometeu gerar o Messias de sua linhagem.

Davi, Hitler e Bolsonaro cativaram seus súditos com um discurso enérgico, patriótico, triunfalista e – pasmem! – inclusivo. Embora não dessem aos seguidores o direito de pensar, seduziram-nos dizendo-lhes o que queriam ouvir. Ora, sabemos que isso é alienação. Mas existe um modo de falar ao coração das pessoas sem manipulá-las. Quando Moisés foi chamado por Javé, este deixou bem claro que o enviava para atender ao clamor do povo (Ex 3,1-10). Deus foi enfático: “eu ouvi o seu clamor!” (v. 7b). Como propor aos jovens um mundo de paz e vida em plenitude? Que tal se, em vez de dizer-lhes o que devem querer, começássemos por ouvir os seus clamores? Muitos são os motivos para aderirem ao discurso de ódio, mas o principal deles é não se sentirem incluídos em nossos projetos de um mundo melhor.

 

REFERÊNCIAS

SAVAGE, Jon: Os Soldados de uma Ideia: A Juventude Hitleriana. In: ______: A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Tradução: Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 277-298.

Bíblia de Jerusalém: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.

 

SÍTIOS

https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/09/15/rejeicao-a-bolsonaro-chega-a-56-entre-os-jovens-aponta-datafolha.htm. Acesso em: 24/10/2018.

http://datafolha.folha.uol.com.br/eleicoes/2018/10/1983182-com-58-bolsonaro-larga-com-vantagem-de-16-pontos-no-2-turno.shtml. Acesso em: 24/10/2018.


Um comentário:

  1. Há que se cuidar do broto, porque do contrário, as flores e os frutos............ Onde erramos? Sem querer começar fazendo esse debate pelo copo vazio ou pelo aspecto negativo, estamos buscando respostas a isso, por meio das lives da Ação Cultural.

    https://acaoculturalse.blogspot.com/2020/06/com-educacao-popular-e-animacao.html

    ResponderExcluir