A primeira carta aos
tessalonicenses bem se podia chamar o manifesto de carinho da grande família. A
mesma comunidade missionária (Paulo, Silvano e Timóteo) que chama seus
destinatários de irmãos logo no começo (1Ts 1,4), coloca-se como mãe (v. 7b) e
pai (v. 11) deles no capítulo 2. Como autênticas filhas e filhos, é aquela
gente chamada de “nossa glória e nossa alegria” (1Ts 2,20). Quem os “elegeu”
como família foi um Deus que é Pai (1Ts 1,1.3; 3,11.13), tornando-os
irmãos e irmãs em seu Filho, Jesus (1Ts 1,10).
Essa linda história lembra
um filme, Francesco, em que o santo de Assis apresentava a cada novo
membro da ordem seus novos irmãos, irmãs, pais, mães, filhos e filhas, aos
quais o noviço deveria se recomendar e cuidar como a uma família. Por outro
lado, lembra também um lar para crianças, muito comum nas guerras, mas também
presente em nossos dias: o orfanato. Aqueles jovens e crianças não têm mais
ninguém na terra, a não ser uns aos outros. Ele próprio, Francisco, tornou-se
órfão de pai vivo quando renunciou a tudo, inclusive às vestes do próprio corpo.
Quem o seguia também era um orfanado (ou depois, com as clarissas, orfanada),
renunciando a tudo para abraçar sua nova parentela.
Mas o que histórias tão
tristes têm a ver com o manifesto de amor aos tessalonicenses? Curioso,
primeiramente, notar que, em 1Ts 2,17, a comunidade paulina diz assim: “Ora, nós, irmãos,
orfanados por breve tempo de vossa presença…” Algumas traduções podem
trazer “separados”, “privados”, mas o termo grego é aporphanizu, “tornado
órfão”. O sentimento, portanto, é de separação brusca do seio familiar. Em Lc
12,51-53, Jesus diz assim: “Pensais que vim
estabelecer paz na terra? Não, eu vos digo; antes, divisão. Porque, daqui em
diante, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois, e dois contra
três. Estarão divididos: pai contra filho, filho contra pai; mãe contra filha,
filha contra mãe; sogra contra nora, e nora contra sogra.” E adiante, em Lc 14,26: “Se alguém vem a mim e não odeia
a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e ainda a sua própria vida, não
pode ser meu discípulo.” Palavras difíceis, que pouco parecem combinar com
a imagem de um Deus afável que os evangelhos tentam transmitir. Ou estamos
diante de um Jesus em seu dia de fúria, ou – o mais provável – isso era o que
estava acontecendo nas comunidades.
O
evangelho de Lucas é escrito por volta de 85 a 90 d.C., praticamente 40 anos
depois da carta comunitária aos tessalonicenses. O texto tem paralelo somente
no Evangelho de Mateus (10,34-37). O que eles têm em comum? São escritos praticamente
na mesma época e na diáspora, isto é, em cidades do mundo greco-romano, fora de
Israel. O templo e a cidade sagrada, Jerusalém, já tinham sido destruídos há
quase vinte anos. Os cristãos e cristãs, considerados os verdadeiros culpados pela
catástrofe, foram expulsos das sinagogas. Seus parentes “não-convertidos”,
porém, continuavam frequentando as comunidades judaicas. Quem tem um tio ou uma
prima neo-convertidos em casa deve saber como ficam os ânimos nestes casos. Só
que lá a situação foi potencializada, devido ao desfecho trágico dos
acontecimentos.
A
destruição de Jerusalém, entretanto, não explica, por si só, essas
animosidades. Ainda que os evangelhos fossem já uma releitura das palavras e
gestos de Jesus (imagine-se contando uma história vivida por sua avó, antes mesmo
de sua mãe ou seu pai terem nascido), é possível que, já em vida, Ele e sua
comunidade (seguidoras e seguidores) tenham sido perseguidos por familiares
consanguíneos. Como explicar, por exemplo, que o Cristo tenha evitado seus
parentes quando soube que estes o procuravam? “Minha mãe e meus irmãos são
aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Podemos
aceitar que isso não tenha acontecido de verdade, que, embora o texto se encontre
também em Mateus (12,49-50) e Marcos (3,34-35), trata-se de mais uma fábula
para tranquilizar a quem, por aderir à “Seita do Nazareno”, se indispôs com a
própria mãe. Mas, e a carta aos tessalonicenses, escrita por volta do ano 50 da
E.C. (Era Comum)?
Mais
fácil sabermos o que aconteceu da virada do milênio para cá do que nos porões
da ditadura, não é verdade!? E não é só pela facilidade de informações que
temos hoje. Feridas de 20 anos ainda estão recentes e são mais facilmente
identificáveis que as de 60 anos. Nesse sentido, o afastamento de Paulo e seus
companheiros de um ambiente que transbordava amor é o melhor comprovante de que
esse rompimento histórico se deu já nas origens. A carta, escrita 20 anos antes
da destruição do templo, conta como, naquela época, já havia grupos judaizantes
que perseguiam os cristãos: “[os judeus] não somente mataram o Senhor Jesus
e os profetas, como também nos perseguiram, e não agradam a Deus, e são
adversários de toda gente, a ponto de nos impedirem de falar aos gentios…”
(1Ts 2,15-16). Tal relato atesta, inclusive, os acontecimentos da segunda
viagem paulina narrados em At 16-18.
Discute-se
o tom antissemítico da carta. Parece que seria uma glosa, por destoar de outros
textos paulinos. Não nos esqueçamos, porém, que ela foi escrita no calor do
momento. Paulo e sua equipe acabavam de ser expulsos, consecutivamente e pelo
mesmo grupo, de Tessalônica (At 17,10) e Bereia (At 17,13). Nesta, a bem da
verdade, foram encontrados judeus (e mulheres – v. 12) mais nobres,
assim como em Corinto (At 18,1-2 – os missionários são acolhidos por um casal
judeu). Mas a raiva com os de Tessalônica devia ser tão grande que Paulo os
chamou de Satanás (1Ts 2,18) e Tentador (1Ts 3,5).
Perfeitamente compreensível. Ainda hoje, após 500 anos
da revolução causada pelas 59 teses de Martinho Lutero, os luteranos continuam
sendo chamados, por alguns grupos até bem intencionados (tanto quanto eram os
judeus tessalonicenses), de separados. O próprio termo “protestante” coloca-os
em contraposição a uma religião “oficial”. Felizmente, a visita do papa
Francisco à Suécia, ano passado, já é sinal de que os ventos estão mudando.
Pela primeira vez, em tom de respeito e diálogo, prepara-se uma celebração conjunta
por um dos centenários – o quinto, no caso – da Reforma. Lá o papa disse que a
culpa da divisão entre luteranos e católicos é dos poderosos, que essa não é a
vontade do povo fiel[1]. Na Igreja Luterana de Roma, este
ano, foi mais específico[2]: “Por detrás dos muros humanos existe uma fantasia: [...] se
tornar como Deus! Para mim, [...] a narração da Torre de Babel, é precisamente
a atitude do homem e da mulher que levantam muros, porque erguer um muro é
dizer: ‘Nós somos os poderosos; vós, fora!’. [Nisto] estão a soberba do poder e
a atitude proposta nas primeiras páginas do Gênesis: ‘Sereis como Deus’ (cf. Gn 3, 5).
Erigem-se muros para excluir; caminha-se neste rumo.” A comunidade católica mais
nobre acolhe e vibra com essa boa nova. Já o grupo de Satanás
(literalmente, “adversário, opositor”)...
Os pobres, de fato, parecem não se importar muito com
essas divisões. A considerar o que diz 1Ts 4,11 sobre o povo trabalhar com as
próprias mãos, podemos dizer que se tratava de uma comunidade de gente simples.
Como simples foi o motivo que levou a equipe missionária a escrever a carta. Por
intermédio de Timóteo, aquela comunidade humilde manifestou uma preocupação bem
existencial: quando e como se dará a Parusia? Isto é, o que vai
acontecer com nossos mortos quando o Messias voltar? E aqueles que nem
conheceram a mensagem do Evangelho? Terão lugar garantido na nova Terra? E quem
não se converteu? Vou voltar a ver minha avozinha? Aliás, quando Ele vai
voltar? Já faz 20 anos que se foi... Cadê? A resposta mostra como o texto é
antigo, talvez o mais antigo do Segundo Testamento. Aqui temos um Paulo que
ainda acredita numa volta mágica e majestosa de Jesus. Ele diz algo do tipo:
aguentem mais um pouquinho! Ele já deve estar chegando! Quando chegar, chamará
os mortos primeiro! Mas depois seremos nós... Bem diferente da visão de Atos 1,9-11
– “Ele já voltou!” – e de 1Cor 11 – “Isto é o meu corpo... Isto é o
meu sangue... Fazei isto em memória de mim!”
Mas o importante, apesar da visão ingênua em 1Ts, é o
que Paulo diz a seguir (5,12): “Agora vos rogamos, irmãos, que tenhais
apreço por aqueles que se afadigam no meio de vós.” Muito bonito estar
preocupado com a vó, que já se foi. Mas lutemos, agora, pelas pessoas que ainda
vivem, oprimidas por um sistema injusto que nos divide, independente de sermos católicos,
espíritas, candomblecistas, xamanistas, budistas ou ateus, em exploradores e
explorados. A denúncia do papa Francisco se estende a todas as divisões, ou
melhor, às desigualdades, que são causadas sempre pela mesma elite, em todos os
campos da sociedade (dos quais o religioso é só mais um), motivada pela sede de
poder. Desmascaremos esse modelo econômico, político e social e celebremos, a
exemplo do que agora fazem católicos e luteranos, a oikoumene, isto é, a
casa comum, casa de todas e de todos, independente de credo, cor, sexo, idade,
localização geográfica. Amém, Axé, Awere, Aleluia!
[1] Cf. https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2016/documents/papa-francesco_20161031_omelia-svezia-lund.html.
Acesso em: 14/09/2017.
[2] Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/november/documents/papa-francesco_20151115_chiesa-evangelica-luterana.html.
Acesso em: 14/09/2017.
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