“Nunca se ouviu
falar de ninguém que tenha
aberto os
olhos de alguém que nasceu cego.
Se esse homem
não viesse de Deus,
não poderia
fazer nada.”
(Jo 9,22-23)
Ao passar Jesus, alguma coisa sempre acontece. O
coxo anda, a surda ouve, a muda fala, o cego vê. Há tempos queria falar aos
adultos sobre os jovens. Finalmente, veio Chapecó/SC e a oportunidade. Lá,
descobri que a sede juvenil de entender a palavra não é menor que o desejo
adulto de compreender o fenômeno juventude.
Jesus vê aquele que era cego de nascimento, segundo
nos diz João, cap. 9. Parece óbvio. O contrário é que não poderia ser, não é!?
O que chama a atenção, porém, é a suspeita de que essa pessoa, habituada a
conviver com a cegueira desde o nascimento, não percebia isso como uma
deficiência. O mesmo se dava com os participantes, que interpretaram os jovens
como sendo o cego do texto, necessitando, portanto, serem “auxiliados”
(guiados, na verdade) pelos adultos. Pobres vítimas do adultocentrismo! Programadas
e programados, desde o nascimento, para manter o bom e velho sistema patriarcal,
comandado não mais pelos chefes de família, mas igualmente dominado por uma
elite masculina, branca e poderosa. Que belo susto tomaram quando perceberam
como, sem querer, querendo, seu discurso estava impregnado do desejo, não de
animar, mas controlar o protagonismo juvenil.
Isso faz deles pessoas ruins? Não, obviamente!
Temos a cultura de culpar as vítimas. Ora, essas são cegas desde o nascimento.
Quem são os culpados, então? Seus pais? Vítimas, igualmente! Vítimas à espera
de manifestação divina, de um sinal dos céus, única esperança que lhes resta,
muitas vezes. Gente que não se apega mais à Lei, mas espera na Justiça. Esperança
de que os verdadeiros culpados de sua cegueira sejam destronados. Sofrem o peso
de uma cultura opressora. Sofrem caladas e calados. São marcados na alma. Reproduzem
o discurso, pois é a única coisa que entendem, é o único mundo que conheceram,
enfim.
É tanta sujeira! Para ver melhor, a gente precisa
se lavar. Mais que isso: é preciso renascer. Do barro viemos; o barro restaura
a visão. A vida é recriada. Aperta-se uma tecla; reboot iniciado. Jesus, luz do mundo (faz sentido! Como enxergar no
escuro?), faz o lodo, dizendo com isso que precisamos entender qual o sentido
da criação. Principalmente, precisamos entender que não somos deusas e deuses;
somos criatura. Não temos o poder sobre todas as coisas e, se algo dominamos, é
por mera concessão divina. O relato da criação deixa claro que nosso papel é
cuidar do jardim. Não somos os donos do campinho. Não somos os donos das nossas
filhas e filhos. Da mesma forma, não deveríamos ser propriedade de ninguém. Se
isso acontece, algo está errado. É preciso iluminar o caminho. Nada como a água
para tirar a sujeira que nos impede de ver.
Não é à toa que a água é a matéria do batismo.
Lavar-se, enxergar, é comprometer-se, mudar a postura, mudar de atitude. Isso
incomoda quem está à nossa volta: “Você, um adulto, falando mal dos adultos?”
Não, não estou falando mal dos adultos; estou falando que o modo como tratamos
os jovens é errado. “Mas até outro dia era tu que falava mal deles!” Mas agora
vejo as coisas de um modo diferente. “Ora, não me venha pregar moral de cueca!”
Mudar incomoda quem está por perto, pois obriga as pessoas a repensarem suas
opiniões. Ninguém gosta de ser confrontada, confrontado. Nem todos têm coragem
de renascer...
Por que é preciso coragem? Ora, porque o
questionamento sempre leva à origem de todos os males: o centro do Poder.
Imagine que você tem uma longa caminhada na comunidade. Todo mundo te conhece,
conhece teus filhos. Alguém te encontra no trabalho, numa festa, numa rua
qualquer e te reconhece como aquela, aquele que toca nas missas de sábado à
noite. De repente, vem um cidadão e começa a questionar os hinos da Igreja, que
há mais de 20 anos são os mesmos. Como você se sentiria? Bom, o fato é que esse
cara tem razão: são sempre as mesmas músicas, desde que você começou a tocar. O
que fazer? Seja sincera, seja sincero ao responder. Vou dizer o que acontece
normalmente: as pessoas usam o poder que o longo tempo de permanência no posto
lhes confere para, mesmo reconhecendo que o outro tem razão, fazer com que toda
a comunidade ignore-o. E, se o sujeito insistir, moverá céus e terras para
bani-lo do convívio do grupo. Não confiamos no que não podemos controlar. Por
isso, não confiamos nos jovens. Por isso, a grande mídia procura desmoralizar
quem questiona a autoridade da elite dominante. Não gostamos de ser
controlados, mas procuramos controlar o que nos cerca. É nossa cultura! É útil
aos governantes, pois nos mantém divididos. Quando alguém percebe isso, e passa
a questionar o opressor, corre o risco de ser silenciada, ser silenciado.
Onde buscar coragem para enfrentar os riscos? Nossa
mentalidade de adulto manda recorrer à família. A mãe e o pai do cego do texto,
com medo dos fariseus, entregaram o filho à própria sorte. Às vezes, a família
é a primeira prisão do jovem: “Estuda primeiro, meu filho! Para de ficar
sonhando acordado! Não te envolve em política...” Quando ele ou ela demonstra
que não cabe na caixinha que seu pai e sua mãe lhe prepararam, fica
desamparado: “Quando te falei, não me obedeceu, né!? Agora é por tua conta!
Engole esse choro!” Nestas condições, é normal ficar desorientado. Mas é quando
precisa de suas asas que normalmente o jovem se supera. Sua ousadia surpreende
e desarma o adulto. A reação é instantânea: “Ou tu te molda à estrutura, ou tá
fora!” Ser desafiado a voar... e pelas próprias asas! Quantos pais, quantas
mães têm medo de ver seus rebentos caírem? Quantos adultos têm medo de não serem
mais úteis? Mas tem aquela parcela mal intencionada... Seu medo é que isso – o voo
– dê certo! Quem é capaz de voar só para se for abatida, abatido. Aves
solitárias voam muito alto para ficar protegidas. Não é o caso dos jovens. Sua
natureza é totalmente social, grupal. Eles voam em grupos. Isso lhes dá força,
isso lhes dá coragem. Imagino que, enquanto dançava o “guli, guli”, o povo de Chapecó tenha percebido isso. Em vez de
querer que sejam águias, fortes mas solitárias, é preciso aprender a voar com os
jovens.
Voar em grupo e fora da estrutura... Isso é
liberdade! Os fariseus expulsam o que tinha sido cego do Templo. Enquanto o
longo debate ocorreu dentro da instituição, onde esteve Jesus? Ninguém o viu!
Ninguém o conhecia direito, nem mesmo o curado da cegueira, que o considerava
um profeta. Quando é que ele e Jesus voltam a se encontrar? Fora do Templo,
fora da estrutura, fora do sistema. É nesse momento que o neovidente o reconhece como o Messias, o Filho do Homem. É como se
ele fosse adquirindo a visão aos poucos. Ou seja: Para ver, basta querer! Mas
não acontece de uma hora para outra. É processo... Os adultos de Chapecó
levaram um final e semana inteirinho para perceber suas limitações. E não vamos
dizer que saíram doutores em juventude. Mas uma coisa elas e eles aprenderam:
Só vamos enxergar, de fato, quando rompermos definitivamente com esse sistema
que está aí. O primeiro passo? Desconstruir nosso discurso impregnado de ideais
patriarcalistas. Como? Não esperar que os jovens abracem nosso modelo de
comunidade, mas ir ao encontro deles, estar com eles, caminhar com eles, ouvi-los
antes de sermos ouvidos.
Quem disser o contrário, estará sendo como os
fariseus. Eles se julgavam superiores quando disseram àquele que foi curado:
“Tu vives todo em pecado e quer nos ensinar!” Eles perceberam desde o início
que só um enviado de Deus poderia curar a cegueira do povo. Mas não podiam
colocá-lo num sacrário, não tinham como controlá-lo. Então, apegaram-se à Lei,
à proibição de curar no sábado. Ora, Jesus mostra que o sábado foi feito para nos
lembrarmos de continuar a obra da criação. Não há outro sentido para o descanso
de Deus. Os fariseus bem o sabem, mas assumi-lo é abrir mão do Poder que
exercem sobre o povo, condição que lhes é mais sagrada que o próprio sagrado.
Por isso, são os piores cegos. Sua postura não é de não saber; é de não querer.
Como adultos, temos duas opções: Ou manter o
discurso controlador, ou abrir-se ao diferente, isto é, ao modo como o jovem vê
o mundo. O povo de Chapecó disse que estava saindo quebrado do encontro. Alguns
disseram que estavam com pulgas atrás da orelha, que saíam do seminário com
muito mais pontos de interrogação do que quando entraram. Isso é ótimo: Ver é
processo! Pulga coça, incomoda, faz a gente se mexer. Estou num ônibus, quase
chegando em minha cidade: São Leopoldo/RS. Tomara que minha passagem por terras
catarinenses não tenha sido como a da banda do Chico Buarque, que fez todo mundo
se mexer, mas, tendo passado, tudo voltou ao lugar. Tomara que minha passagem
por lá seja como a de Jesus: criadora, incômoda, transformadora e um sinal do
Reino definitivo. Amém!
Nenhum comentário:
Postar um comentário