O que ora segue foi meu primeiro artigo publicado sobre Bíblia e Juventudes. O ensaio consta na Revista Estudos Bíblicos nº 103, terceiro trimestre de 2009.
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“Se a Juventude viesse a faltar, o rosto de
Deus iria mudar...”
(Música: “O Rosto de Deus”, de Jorge
Trevisol)
Por: José Luiz Possato Junior
e Barbara Virginia Lucas
“Um dia resolvi desenhar uma
cidade. Mais... Tentei personificá-la. Pensei nela como um todo. Dei-lhe um
corpo. Imaginei seus contornos, sua voz, seu estilo, suas habilidades e
competências. Para não faltar com a realidade, olhei mais de perto. Vi seus
movimentos, suas cores e seu ritmo acelerado. Quis, por fim, desenhar-lhe um
rosto. Que dificuldade... Precisei olhar mais de perto. E então vi uma senhora
com o rosto pintado de jovem. E pensei... É este o rosto da cidade onde eu
moro.”[1]
No mundo controlado pelos
adultos, o “rosto que vende” é o dos jovens. Quando se olha para as cidades,
parece que estamos diante de um palco, onde tudo nos bastidores é dirigido por
adultos, mas os artistas, aqueles que representam, que dão rosto e expressividade,
aquelas que traduzem em falas e movimentos as ideias da escritora e do diretor,
são as/os jovens.
É só olhar a arquitetura e tudo o
que estiver relacionado ao urbanismo contemporâneo. Há um conceito futurista no
ar. Tudo parece ir ao encontro do que as/os jovens pensam, procuram, usam,
curtem, enfim: tudo o que consomem. Mas será assim mesmo, ou só se está à
procura da jovialidade, do que há tempos homens e mulheres intentam encontrar,
a saber: a Fonte da Juventude Eterna?
A promessa de ser sempre jovem
traz incluso no pacote o ser para sempre bonito, charmosa, atraente, forte,
viril, ágil, livre, despreocupado/a etc. Numa palavra: Infalível. Mas será que
as pessoas jovens de fato se aproveitam dessas vantagens, ou têm outras
preocupações, outras realidades, outras aspirações? Estariam os adultos
preocupados com o que sentem e o que pensam os jovens? E estariam os jovens
engajados em satisfazer suas próprias necessidades, ou aquelas que os adultos
lhes impõem? Em que as cidades contribuem para essas realizações? É possível
que a Bíblia ilumine também essas situações? É sobre isso – e muito mais – que
passaremos a discorrer agora.
Juventude(s): Mero conceito?
Seria a Juventude uma condição
biológica? Afirma a ONU que jovem é quem tem entre 15 e 24 anos de idade. Ou
será uma construção social? Vão dizer os especialistas[2]
que sim. E isso por quê? Durante a Revolução Industrial (séc. XVIII e XIX), o
mundo todo muda. A burguesia ascende ao poder, ganhando o que Marx chamou de
luta de classes. A economia, antes essencialmente rural, começa a se concentrar
nas cidades, o que provoca o êxodo massivo das famílias para os centros
urbanos. A família patriarcal, feudal, cede lugar à família nuclear. Um número
maior de jovens agora tem acesso aos estudos. Surgem grupos juvenis organizados
e articulados. A própria palavra “Juventude”
só passa a ser empregada nessa época, referindo-se justamente a esses grupos. Sendo
assim, concluímos que o termo, além de recente, é próprio da/o jovem urbana/o –
repetimos – enquanto grupo organizado e articulado.
Óbvio que hoje temos a juventude
de periferia, do morro, da favela, a juventude rural, quilombola, indígena etc.
Esses grupos não pertencem àquela juventude burguesa dos séculos anteriores; suas
lutas têm motivações bem diferentes. Mas podemos considerá-los juventude porque
também estão organizados e articulados. O mesmo acontece com as “tribos” de grafiteiros, do hip-hop,
punks, emos, étnicas, feministas, juventudes partidárias, torcidas organizadas
etc. Por isso, falamos sobre Juventudes, no plural. E olhem só...
Não é esse também um traço urbano: a diversidade?
Enfim, Juventudes e Meio Urbano
Voltemos à senhora com rosto
pintado de jovem. Que traços das juventudes podemos ver em nossas cidades? Pra
começar, elas traduzem a alegria, a festa, o paisagismo contemporâneo, as
luzes, a moda, o colorido da cidade. Traduzem também a energia necessária para
superar os desafios, as preocupações, as rugas. Aliás, elas traduzem ainda os
sonhos de eternidade.
A visão contemporânea de mundo é
futurista. Isso podemos perceber pela arquitetura, pelas artes, pelo cinema,
shoppings, pela tecnologia etc. Sendo assim, quem melhor do que as juventudes,
consideradas o futuro da nação, para serem “garota-propaganda” dos tempos
atuais? Mas só propaganda! Nada de protagonismos...
Nenhum outro segmento é mais
elogiado, retratado e perseguido pelos meios de comunicação de massa do que a
juventude. Bom... Nem todo tipo de juventude, na verdade. Têm indiscutível
preferência as/os jovens que são ideais de beleza, dinamismo, astúcia, aventura,
humor, ação, velocidade, flexibilidade, paixão, fúria, enfim... As mocinhas e
os galãs de Hollywood. Outro grupo
preferido é aquele que, em tempos de constante mudança, tem o pique necessário
para acompanhar o progresso. Ninguém é melhor do que esse grupo para dominar a
tecnologia virtual (internet,
celulares, MP5, ipod, iphone, playstation 2, wireless etc.).
Em geral, a juventude é tão ágil,
esperta, sedutora, indomável, que muitos a chamam de “espírito de liberdade”. Lindo título, mas nada mais contraditório
do que um espírito de liberdade aprisionado. Enquanto grupos adultocêntricos
determinam que tipo de liberdade querem para as/os jovens, mantêm as
características próprias – e indesejáveis – das juventudes (a saber: espírito
revolucionário, questionador, aberto à novidade) sob controle.
Por outro lado, há quem chame a
juventude por outros nomes. Nas missões de “paz”, ela é o pelotão de frente, a
primeira a “morrer pela pátria”. No tráfico de drogas, ou ela é usuária, ou
traficante. No jogo do poder, ela é ingênua demais para assumir cargos
importantes; mas é útil como massa de manobra. No trânsito, parece até que só
ela é imprudente. Trabalho??? Só na Igreja e demais instituições onde seja
necessário alguém para carregar bancos. Obviamente, sem remuneração. Para os
demais cargos, seja em que instituição for, não há vagas. Isso porque dizem que
ela é desprovida de experiência.
Diante desse quadro, arriscamos
dizer que há um desejo de apropriação muito forte dos aspectos juvenis geradores
de força e poder, mas ao mesmo tempo um medo muito grande de que os jovens
descubram ter esse poder. Afinal, a juventude privilegiada continua sendo
burguesa, bonita, saudável, exemplar... Exemplar? Isso mesmo!!! Os jovens da TV
são exemplos de comportamento, ou seja: absolutamente dóceis ao comando dos
adultos e controlados pelos pais, professores e superiores hierárquicos.
Quem sai desse padrão, é
facilmente transformado em irresponsável, delinquente, marginal. Uma turma de
jovens brancos, parados numa esquina, bem vestidos, não transmite nenhuma
insegurança à população. Agora, basta dois jovens negros, com roupa de
motoqueiro (provavelmente trabalhando), parados, conversando, para que a
vizinha da frente ligue imediatamente para a vizinha do outro lado da rua e comunique
a “atividade suspeita”.
Em casa, o filho resolve torcer
para um time diferente daquele preferido pelo pai, ou a filha resolve seguir
uma carreira que não foi planejada pela mãe. Qual a atitude da maioria dos
pais? Muitas pessoas têm que fazer terapia para se livrar da “culpa” de ter
decepcionado os pais, quando na verdade estavam procurando seu próprio caminho.
Se em casa, com uma carga
emocional muito forte, a relação entre adultos e jovens já é tensa, o que dizer
das relações sociais onde o adulto não tem vínculo afetivo com o jovem? É o
chefe que orienta a estagiária, o sargento que manda no soldado, a professora
que educa o aluno etc. Quem está sempre em condição inferior?
Há um padrão a ser seguido! Como
bem lembrava Renato Russo, vocalista de uma banda de rock muito querida
pelas/os jovens da década de 80, há uma pergunta a ser respondida: “O que você
vai ser quando você crescer?” Ninguém quer saber da/o jovem o que ela/e é
agora!
O/a leitor/a pode dizer que
estamos falando o óbvio; e estamos! Mas vejamos alguns dados:
“Pesquisa recentemente divulgada pela Unesco
no Brasil mostra que em 2002
a taxa de homicídios na população jovem foi de 54,5 para
cada 100 mil, contra 21,7 para o restante da população. E o que é mais grave:
enquanto as taxas referentes ao resto da população tem se mantido relativamente
estáveis desde 1980, no segmento juvenil pulou de 30 naquele ano para os 54,5
de hoje”.[3]
Haverá alguma ligação entre esses
números e as obviedades às quais estamos nos referindo?
Aliás, os jovens, em especial os
mais pobres, estão associados à violência, segundo o veredito popular. Hollywood mostra isso muito bem, em seus
filmes de gangues. O congresso brasileiro também, na medida em que está prestes
a reduzir a maioridade penal, de 18 para 16 anos, no intuito de diminuir a
criminalidade no país. Não é isso o mesmo que dizer que a culpa da violência é
dos jovens?
Mas será que essa violência é
gratuita, uma iniciativa dos próprios jovens, ou serve aos interesses de
alguém? Haveria algum grupo manipulando a massa juvenil para que se mantenha em
“pé-de-guerra”? Afinal, muitos dos atos são em grupo, entre facções, entre
torcidas organizadas, entre grupos rivais, alguns armados de paus e pedras,
outros possuindo uma verdadeira artilharia pesada. Seriam os próprios jovens os
patrocinadores dessa violência, desse armamento, dessa verdadeira guerrilha
urbana?
Alguns dirão que o verdadeiro
vilão, o causador disso tudo, é a droga. Mas quem é essa tal de droga? Alguém
aí já apertou a mão dela, já conversou pessoalmente com ela? Como ela vai parar
na mão do traficante? Por que a fiscalização, a investigação, o trabalho de
inteligência e segurança e todos os mecanismos de combate à droga são tão
ineficazes? Estaria alguém fazendo vistas grossas para o trânsito dessa
mercadoria? A troco de quê?
Diante disso, é preciso
perguntar: É da índole jovem o ser violenta/o? Ou então: A violência é
exclusividade dos jovens? Provocados a responder, diremos que não! Mas então
por que a maioria dos presos é jovem? E por que a maioria dos jovens presos é
de afro-descendentes? E por que a quase totalidade dos presos é pobre?
As outras duas grandes
preocupações dos jovens (além da violência) são a sexualidade e o trabalho.
Mães solteiras, HIV-AIDS, camisinha, aborto... Primeiro emprego, experiência
comprovada, estágio não (ou mal) remunerado... Não vamos nos alongar na
discussão de mais esses itens. Voltaríamos a falar de obviedades. Basta dizer
que, apesar de serem óbvias, as situações de exploração, exclusão,
marginalização e criminalização das/os jovens continuam, são evidentes e,
muitas vezes, endossadas por pessoas “esclarecidas” como nós. Com alguma freqüência,
pessoas que se dizem libertadoras, acusam as/os jovens de omissão, comodismo,
apatia, inexperiência, violência, irresponsabilidade... E alegam que a culpa
dos desvios dessa geração se deve à sua total alienação política, social e
religiosa.
Mas será este mesmo o retrato da
juventude atual? Será mesmo esta uma geração de alienados? Vejamos outros
números[4]:
As estatísticas (da pesquisa já
citada da Unesco) mostram que os jovens estão identificados com os ideais de
solidariedade, respeito às diferenças e igualdade de oportunidades (esse tipo
de preocupação combina com perfis violentos?). 83% se posicionam politicamente
(alienados/as?). 84% dos jovens acreditam que podem mudar o mundo
(acomodados/as?).
Não podemos deixar de registrar
também estes números: Embora 84% dos jovens acreditem que podem mudar o mundo, somente
22% fazem ou querem fazer alguma coisa. Seria isto sinal de comodismo, ou há
outras causas?
“A resposta está, provavelmente,
na pobreza de grande parte dos jovens brasileiros. Pelos dados da pesquisa do
Projeto Juventude, 42% dos jovens vivem em famílias com renda de até dois
salários mínimos e outros 31% em famílias com dois a cinco salários mínimos de
renda... Por mais que os jovens nesta situação acreditem que a juventude pode
mudar as coisas, eles sabem que têm que cuidar antes da própria sobrevivência,
evitando serem tragados pela violência criminosa ou mergulhando nela, como
tentativa menos pior.”[5]
“A juventude deseja ajudar o
mundo a mudar e pensa em fazê-lo menos mediante a militância política do que
pela ação direta. Mas a maior parte dela, antes de poder contribuir para a
mudança, tem de ser ajudada... O que o “Perfil
da Juventude Brasileira” deixa entrever é que os jovens brasileiros irão à
luta por um Brasil melhor desde que obtenham as bases materiais mínimas de
sobrevivência. Esta deveria ser a prioridade zero de qualquer programa público
para a juventude, porque o futuro do país pode vir a depender dele.”[6]
Como podemos perceber, as/os
jovens não são acomodadas/os, nem desinformadas/os. Eles são pressionados pelo
sistema a deixar de lado suas reivindicações para providenciar o seu sustento,
ou contribuir no sustento da família, ou ainda garantir o sustento de seus
dependentes.
E no campo do Sagrado?
Também não é verdade dizer que
falta religiosidade aos jovens de hoje. Vejamos:
Segundo pesquisas[7],
podemos perceber o aumento da diversidade religiosa (de 99% de jovens católicos
em 1890 para 73,6% em 2003), dos crentes sem religião e a centralidade da
Bíblia na espiritualidade da juventude. Isso mostra que, longe de ser uma
geração descompromissada religiosamente, trata-se antes de jovens preocupados/as
com uma fé para além das instituições e em busca do sagrado.
Sabendo que fora das instituições
não há como controlar um grupo – na medida em que esse grupo não se vê obrigado
a seguir as regras institucionais – muitos líderes religiosos tendem a também
marginalizar esses jovens, chamá-los de tolos, ingênuos, infiéis... Em vez de
entender a rebeldia (que parece, mas nunca é gratuita), mais uma vez o adulto
racionaliza e elege o jovem como problema. Também... Quem manda questionar as
convenções milenarmente estabelecidas?
Eis uma ótima discussão a ser
feita em nossas comunidades: Até onde os jovens são descompromissados com as
liturgias, as festas, o bingo, o dízimo e os demais eventos da comunidade? E
até onde sua rebeldia revela a discordância com o modelo vigente de
evangelização de nossas igrejas?
Mas vamos, enfim, partir para a
constatação que mais nos interessa no presente artigo: a centralidade da Bíblia
na espiritualidade juvenil.
E por falar em Bíblia...
E a Bíblia? Será que ela pode ajudar
as juventudes a se libertarem de todas essas amarras da sociedade? Se olharmos a
leitura tradicional e as/os jovens na Bíblia, não! Esse, inclusive, pode ser o
principal motivo de historicamente as juventudes terem reservas quanto à
Palavra de Deus. Além de ser um instrumento dos adultos para castrar, impor
limites aos anseios juvenis, as personagens jovens mencionadas na Bíblia são
pessoas inexperientes, ou vítimas indefesas, dependentes da intervenção/libertação
dos adultos, ou ainda guerreiros (notem o termo no masculino) que se tornam heróis
mais por encarnarem os valores e os costumes adultos do que pelos seus feitos.
É certo dizer que o conceito de
“juventude” é uma construção sociológica recente (como vimos acima) e, consequentemente,
um termo desconhecido da época redacional da Bíblia. Mas isso não quer dizer
que as pessoas não se organizassem em grupos. Lá, como cá, esses grupos se
reuniam por afinidades, como classe social e faixa etária.
Vejamos alguns exemplos do Primeiro Testamento:
Em 1Rs 12,1-16 temos as
causas da divisão do Império salomônico. O jovem Roboão ouvira as reclamações
do povo, que considerava pesado o fardo imposto por seu pai, Salomão. Os
anciãos aconselharam o rapaz a ser inteligente: ceder agora para reinar tranqüilo
depois. Mas o conselho não agradou a Roboão, que instituiu novos conselheiros: seus
colegas de infância (v. 8). Esses lhe disseram: “Torne o
jugo ainda mais pesado do que fizera teu pai, que eles se curvarão”. Agora sim
estava do jeito que Roboão queria; e foi o que ele fez. Com muita ironia, dizia
ele que seu dedo mínimo era mais grosso do que os rins de seu pai. Resultado: “Voltemos às nossas tendas, Israel! Cuida da
tua casa, Davi!” (v. 16).
O texto é uma crítica ao sistema
monárquico, assim como muitos outros textos dos livros de Reis. A proposta de
resistência fica bem clara no v. 16: “Já tivemos uma experiência monárquica, quando habitávamos o Egito; e
não foi nada boa. Voltemos ao período das tendas, ao Israel tribal, à novidade
que liberta.” Apesar de ser uma ótima proposta, o que aconteceu com a
divisão do Império salomônico não foi o fim do sistema monárquico. Em pouco
tempo, também as tribos do Norte foram submetidas a novo regime monárquico. Entretanto,
o que chama atenção, dentro do que estamos analisando, é que a decisão de
endurecer ainda mais a opressão sobre o povo não foi exclusiva do rei, mas de
um grupo de jovens. Claro que sua condição juvenil não foi o fator determinante
para essa manobra desastrada; pesou antes o poder da coroa. Todavia, o que
queremos ressaltar é que, embora não existisse “juventude” enquanto conceito, havia sim grupos de jovens. Alguns,
com poder de decidir o rumo de uma nação.
Outro grupo juvenil é o das
vítimas indefesas, dependentes da intervenção/libertação dos adultos, como as
mães solteiras, as jovens estupradas. É o caso de Diná, estuprada por Siquém (Gn 34,1-2).
Diz a história que Siquém se apaixona por Diná, depois de tê-la violentado, e
os irmãos e o pai dela fingem permitir o casamento, mas depois passam todos da
casa de Siquém ao fio da espada (Gn 34,1-31). Nessa história trágica,
os sentimentos de Diná são o que menos importa. Ela se enamorou de Siquém?
Aprovou a barbárie que cometeram seus irmãos? Foi consultada sobre como se
sentia?
Bem é verdade que outros jovens
são tidos como heróis na Bíblia: Daniel e seus companheiros, os três jovens que
desafiam Nabucodonosor e são jogados numa fornalha, mas não morrem queimados
(Dn 3), os sete filhos que preferem a morte a comer carne oferecida aos ídolos
(2Mc 7), Ester, Rute, Tobias, José e os reis Davi e Salomão, entre outros. Mas
por que se tornaram heróis? Por serem jovens conscientizados, politizados,
ativos na sociedade, ou por defenderem os valores morais e os princípios
propostos por uma elite política, sacerdotal, patriarcal, adultocêntrica?
Davi, por exemplo! Por que motivo
foi considerado um jovem exemplar? Aliás, Davi é muito mais elogiado pelos
feitos da juventude do que pelos decretos reais de sua idade adulta. Mas que
feitos são esses? Ora, Davi foi um herói de guerra (1Sm 17)! Sua grande
glória foi ter matado um homem (Golias). Aí sua reputação ganhou força para
levá-lo a derrubar Saul e se tornar o rei e futuro imperador de Israel.
Olhemos os heróis de guerra de
hoje. Quem são eles, senão pessoas que na juventude abriram mão de seus ideais
para defender a pátria, cuja soberania foi ameaçada por disputas de poder,
embates provocados por líderes nacionais, senhores de 60, 70 anos de idade, ou
mais? Davi teria matado Golias porque é próprio do jovem o ato de matar? Tudo
bem... O jovem é capaz de matar... Mas Davi o matou por seus interesses
juvenis? Não foi Saul que marchou contra os filisteus (1Sm 17,2)? Por que não
foi Saul o autor do disparo? Ele estava lá! Não teria ele próprio oferecido sua
armadura para proteger Davi (1Sm 17,38)?
Aqui cabe um parêntese, sobre a
manipulação da força juvenil. Para animar seus soldados, nas duas guerras
mundiais (principalmente na segunda), os EUA criaram super-heróis. Eram jovens
com super-poderes, que enfrentavam as forças do mal (traduzindo: os que estavam
do outro lado das trincheiras), usando somente uma capa e uma máscara. Os
feitos heróicos de Davi, jovem e franzino, vencendo Golias, tinham a mesma
função. Já na corte salomônica foram escritas histórias para justificar as
expedições violentas dos exércitos de Davi e Salomão, cuja motivação única era
expandir o seu reinado e torná-lo um império. É desse tempo a primeira redação
do livro de Josué[8]. Ora,
mostrando que a expansão era vontade de Javé e que a principal força de guerra
vinha dos mais jovens, Davi conseguia manter seu exército poderoso e motivado.
Quem sofria com isso? O povo como um todo, é claro! Mas quem ia para a frente
de batalha? E tinham que ir... Era a vontade de Javé.
Sobre a visão negativa das juventudes,
há um livro em especial, que não encontramos na Bíblia Hebraica, o Eclesiástico, ou Sirácida. O livro foi escrito originariamente em hebraico, no auge
da dominação grega, por Jesus Ben Sirac,
que vendo a cultura de seu povo ser suplantada pelo helenismo, resolveu
escrever uma defesa dos costumes judaicos. Tendo se perdido o texto original, o
que chegou até nós foi uma tradução para o grego, feita pelo neto do autor com
o intuito de fazer perseverarem na Lei os judeus da diáspora (Eclo,
prólogo, vv. 34-35).
O elogio ao sacerdote Simão II
(penúltimo da linhagem sadoquita), em Eclo 51,1-21, e a identificação da
sabedoria (tema do livro) com a Lei de Moisés (Eclo 24,23-29), aliados à
importância dada ao Templo e ao culto (Eclo 7,29-31; 50,1-21), levam-nos a
crer que o autor pertenceu à elite sacerdotal de Jerusalém.
Para se opor às escolas
filosóficas, principais promotoras da cultura helênica, implantadas pelos
gregos em todas as suas províncias, os judeus criaram escolas onde as/os jovens
aprenderiam a tradição do judaísmo. É bem provável que Jesus Ben Sirac tivesse
sua própria escola (Eclo 51,23). A iniciativa era válida e necessária para reavivar
a consciência histórica do povo, mas carregava infelizmente as limitações da
elite sacerdotal, como a xenofobia, o patriarcalismo e o conservadorismo
extremado[9].
Como as escolas filosóficas
priorizavam as/os jovens, teoricamente mais suscetíveis à inculturação dos
costumes gregos, estas/es mereceram severas reprimendas do autor. Vejamos
alguns exemplos[10]:
ü
Eclo 9,5: Não fites uma jovem, para
não ser pego na armadilha quando ela espiar (ou, como diz na nota de rodapé: “para não ser punido com ela”);
ü
Eclo 30,11-12: Não lhe dês liberdade
na juventude e não feches os olhos diante de suas tolices. Obriga-o a curvar a
espinha na sua juventude, bate-lhe nos flancos enquanto ainda é menino; do
contrário, uma vez obstinado, te desobedecerá e tu experimentará o sofrimento.
ü
Eclo 32,7: Fala, ó jovem, se te é
necessário, se fores interrogado ao menos duas vezes.
Ser jovem, no período retratado
pelo Primeiro Testamento, realmente não era fácil. Até mesmo Eclesiastes, ou Qohelet, um livro revolucionário em vários sentidos, tem lá suas
ressalvas:
ü
Ecl 11,10: Afasta do teu coração o
desgosto, e o sofrimento do teu corpo, pois juventude e cabelos negros são
vaidade.
E no Segundo Testamento?
Será que a situação das juventudes
melhora quando Jesus entra em cena? Vemos Jesus curando alguns deles:
Ressuscita a filha de Jairo, chefe da sinagoga (Mc 5,21-24.35-43); ressuscita
também o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17). Ele mesmo aparece, aos
12 anos, debatendo de igual para igual com os Doutores da Lei (assuntos juvenis?).
Tem o jovem rico, que cumpria as leis, mas não tinha capacidade de se desfazer
do dinheiro. Mas ele só é jovem em um dos evangelistas (Mt 19,16-22); nos demais,
é um adulto que observa a lei desde a juventude (Mc 10,17-22; Lc 18,18-23).
Em todas as situações, o jovem precisa ser salvo, liberto, ajudado. Difícil é
encontrar um/a jovem, explicitamente mencionado em sua condição de jovem, sendo
protagonista.
Em Atos, nas cartas e no
Apocalipse, a situação não muda muito. O tratamento destinado à juventude
continua o mesmo. Com uma boa vontade tremenda podemos deduzir que Maria era
jovem quando concebeu Jesus (a Bíblia não diz), que alguns dos discípulos de
Jesus eram muito moços quando Ele os chamou (segundo a tradição, João teria 18
anos). Mas ser jovem parece não ter tido muita importância na compilação dos
relatos.
Teriam os autores bíblicos
ignorado a importância da juventude? Há um rito judeu – o bar mitzvá – pelo
qual todo menino judeu passa (ainda hoje), aos 12/13 anos. É o rito de passagem
da infância direto para a idade adulta. Sendo assim, à época da redação, não existiria
a juventude como categoria social, mas somente como fase biológica. A partir
dos 13 anos e 1 dia, o menino era um homem. Por isso fala-se de Jesus aos 12
anos; aos 12 anos também é curada a filha de Jairo. Ambos estão no período da
passagem, estão se preparando para ser adultos.
Quando se diz, declaradamente,
nos textos bíblicos, que a pessoa é moça, nova, de pouca idade, é porque se
quer enfatizar a pouca experiência, a ingenuidade, a falta de discernimento de
tal pessoa. Ou então, como nos casos dos jovens heróis, é para mostrar que Deus
pode suscitar atos de bravura mesmo em pessoas ainda imaturas para a vida
pública. Ou ainda para encorajar outros jovens a cometer atos de bravura pelo
seu país (nada diferentes das propagandas das Forças Armadas hoje).
Por uma leitura juvenil da Bíblia
Fica evidente que, se procurarmos
a/o jovem na Bíblia, vamos reforçar os preconceitos de nossa sociedade, ou
iremos adotar uma postura de salvadores de uma geração à deriva. Assim sendo,
contribuiremos para manter a filha de Jairo (= jovem) deitada, dada como morta,
amordaçada, infantilizada, mantida sob controle, totalmente dependente, à
espera da intervenção salvadora dos adultos.
Mas se, em vez disso, deixarmos
que a própria juventude se interesse pela Bíblia, apodere-se dos textos, produza
uma hermenêutica juvenil, qual será o resultado? Mais do que isso... Também
nós, adultos, podemos nos esforçar, principalmente se julgamos fazer uma
leitura libertadora da Bíblia, por ler os textos acolhendo também a prespectiva
juvenil. Se, por exemplo, retomarmos 1Rs 12,1-16 e percebermos que,
apesar de Roboão e seus conselheiros serem jovens, o que representavam era uma
volta ao antigo, ao velho, ao sistema monárquico egípcio, enquanto as tribos do
norte (haveria jovens entre eles? somente jovens?) queriam o novo, a novidade
do sistema tribal, estaremos contribuindo para uma leitura juvenil.
Aliás, estaremos proporcionando
uma leitura que ultrapasse a dicotomia jovem-adulto, que em vez de promover as
juventudes, acirra ainda mais os ânimos e o antagonismo entre gerações. Sim,
este é um risco! Para se libertar de uma leitura adultocêntrica, as juventudes
podem inconscientemente reproduzir o sistema excludente e deixar as/os adultos
de lado. É preciso que ambos se libertem.
Lemos acima que a Bíblia, apesar
dos pesares, é central na espiritualidade das juventudes. Que tipo de leitura
elas estarão fazendo? Pelo que vimos, o interesse certamente não se deve à
identificação com as/os jovens que aparecem nos textos.
Em nossas experiências, vemos que
as juventudes não aceitam as interpretações tradicionais das Escrituras. Estão
sempre em busca de alternativas para ligar os textos à sua realidade, mesmo que
muitas vezes façam uma verdadeira ginástica mental para alcançar seus
objetivos; criatividade não lhes falta.
Sendo assim, por que não recriar
as relações, libertar sim as/os jovens do peso da discriminação, mas também nos
libertar, como adultos, do peso do preconceito, da falta de misericórdia que
nos impede de reconhecer o amadurecimento como um processo a percorrer, feito
por etapas, e que as juventudes podem ser inexperientes por terem percorrido um
trecho menor, mas com certeza têm muito a oferecer, com seu dinamismo e santa
rebeldia?
Talvez falte orientação – e aí
nós adultos podemos ajudar –, mas não nos esqueçamos de que eles também possuem
necessidades específicas, sonhos, ideais, uma realidade própria. E que é com
essas propriedades que devemos ir com eles às Escrituras, para juntos trazermos
de lá luzes que transformarão definitivamente as estruturas e dignificarão a
vida, não só do jovem urbano, mas das juventudes em geral.
É assim que entendemos a parábola
do Pai Misericordioso (Lc 15,11-32). O filho mais novo
representa a juventude, rebelde, teimosa, sem medo de arriscar. O filho mais
velho são os adultos, superiores, estáveis, prudentes. Ambos estão errados, um
por não querer a graça de estar diante do Pai, o outro por achar que só ele tem
direito, que estar na plenitude é viver como ele, cultivar os valores dele. E o
Pai abraça a ambos, faz festa para todos. A parábola não diz se os irmãos se
deram as mãos. Será que não está a nosso cargo fazer o final da história?
Concluindo: “É de sonho e de pó...”
Queremos concluir falando de
utopias. Falemos de dois jovens do Primeiro Testamento: José (filho de Jacó) e Daniel
(profeta do livro de mesmo nome). O que eles têm em comum? A capacidade de
decifrar os sonhos.
José vai parar no Egito porque
seus irmãos ficam com inveja e ódio dele e de seus sonhos (Gn 37). Por causa de uma
armadilha, José vai parar na cadeia (Gn 39). Faz amizade com os colegas
de cela e interpreta seus sonhos (Gn 40). Um dos colegas é liberto do
cativeiro e volta à função de funcionário do faraó, que também tem um sonho.
Ninguém consegue explicar que sonho é este, mas o funcionário se lembra de José
e sugere ao faraó que consulte o prisioneiro; é o que faz o faraó (Gn 41).
José não só explica o sonho como acaba se tornando o vice-rei, ou
primeiro-ministro de então.
Pena que deste dom de interpretar
sonhos José se aproveite para escravizar todos os povos da região, inclusive
seu pai e irmãos (Gn 47,13-26). Mas uma coisa não podemos negar: através dos
sonhos, José sabia muito bem ler a realidade. Ironicamente, os jovens são
acusados de sonhar acordados, ou de ser sonhadores. Há, inclusive, um ditado
que diz: “Enquanto o jovem sonha, o adulto
se mantém acordado”. Mas não foi através dos sonhos que José viu a
realidade?
Vamos para Daniel (Dn 2).
Enquanto o faraó, na história de José, parecia ser bem benevolente, tanto que
se dispôs a ouvir um preso, Nabucodonosor não parece nada amigável. Ele tem um
sonho e quer que os sábios adivinhem o que ele sonhou. Como ninguém da corte
consegue fazer isso, Nabucodonosor manda matar todos os magos e adivinhos da
Babilônia. Daniel pergunta ao chefe da guarda real o que está acontecendo e
este explica a situação. Daniel pede uma audiência e promete adivinhar o sonho
do rei, fazendo questão de dizer que isso não era habilidade dele, mas ação do
Deus de Israel. Ele consegue adivinhar o sonho do rei e este se prostra, convencido
de que Javé é o Deus verdadeiro, o único Deus.
Ora, o Nabucodonosor histórico
nunca fez isso, mas interessa perceber que também Daniel decifra sonhos. E que
com isso ele consegue transformar a realidade. Esta é a função dos sonhos, das
utopias. Não se trata de viver alienado, mas de projetar um futuro melhor e
seguir em busca dele. Embora os dois casos citados mostrem a habilidades
individuais de interpretar os sonhos, obviamente José e Daniel são símbolos de
um povo. Então são sonhos que se sonha junto. É preciso sonhar, é preciso ter
utopias. São elas que transformam a realidade. E a realidade de nossas
juventudes só irá mudar quando não tivermos medo nem vergonha de sonhar; e
sonhar alto.
Uma dedicatória
Por fim, queremos dedicar este
artigo a todas as tribos juvenis, mas especialmente ao Padre Gisley, Assessor
Nacional do Setor Juventude da CNBB e líder do movimento “Juventude em Marcha contra a Violência”, morto dia 15 de junho
deste ano, por 4 jovens que queriam roubar seu automóvel, um deles com menos de
18 anos...
É irônico que uma liderança
engajada na luta contra a redução da maioridade penal tenha morrido assim. Mas
o pior é que o fato virou argumento a favor dos reducionistas. Oremos para que
os nossos jovens consigam se desvencilhar desta armadilha e que a morte de
Padre Gisley não tenha sido em vão.
[1] POSSATO
JR., José Luiz: Entreter ou controlar?. Disponível em; http://osperegrinos.blogspot.com/2009/08/entreter-ou-controlar.html.
Acesso em: 02/09/2009.
[2] Ver
Intr. de DICK, Hilário. Gritos Silenciados, mas Evidentes – Jovens Construindo
Juventude na História, pág. 13
a 27. Ed. Loyola, São Paulo, Brasil, 2003.
[3] Citado
no artigo de SINGER, Paul: A Juventude como Coorte. Ver em: ABRAMO, Helena
Wendel e MARTONI BRANCO, Pedro Paulo: Retratos da Juventude Brasileira, pág.
29. Ed. Fundação Perseu Abramo, São Paulo, Brasil, 2005.
[4] Os dados
foram extraídos do artigo de SINGER, Paul: A Juventude como Coorte, op. cit.,
pág. 27 a
35. Os parênteses são nossos.
[5] Citado
no artigo de SINGER, Paul, op. cit., pág. 35 – 1º parágrafo.
[6] Citado
no artigo de SINGER, Paul, op. cit., pág. 35 – 4º parágrafo.
[7] Confira
o artigo de RODRIGUES, Solange dos Santos: Nova Trindade – Busca, Fé e
Questionamento. In: Revista Ciência & Vida – Sociologia: Especial sobre
Juventude Brasileira, ano1 nº 2, pág. 64 a 73. Ed. Escala, São Paulo, Brasil, 2009.
[8] Ver:
BOHN GASS, Ildo. Uma Introdução à Bíblia – Formação do Império de Davi e Salomão.
Ed. CEBI, São Leopoldo, Brasil, 2003.
[9] Ver:
BOHN GASS, Ildo. Uma Introdução à Bíblia – Período Grego e Vida de Jesus. Ed.
CEBI, São Leopoldo, Brasil, 2005.
[10] Utilizamos
a tradução da BÍBLIA JERUSALÉM.
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