A festa de hoje é uma das mais controversas do mundo cristão. Nesses dias em que a divisão só fortalece os fascistas, fazer memória de um milagre que sugere a “supremacia” de uma religião sobre outras parece incoerente, se não for conivente com os opressores. Então que tal fazer uma releitura do evangelho de Corpus Christi (Jo 6,51-58)?
A eucaristia sempre foi um
dos pontos mais controversos da discussão entre católicos conservadores e progressistas.
O que o isolamento imposto pela pandemia fez foi acirrar ainda mais o conflito.
Os primeiros, repentinamente, “lembraram” o aspecto comunitário da comunhão. De
fato, é o único momento da celebração que precisa do encontro presencial entre
quem ministra e quem come a ceia. O ponto principal da controvérsia, porém, ficou
em segundo plano. Mas parece que temos tempo suficiente, nesta quarentena, para
refletir: A luta é pelo direito de quem comungar?
Referente ao texto de
João. A discussão começa bem antes do recorte oferecido pela liturgia. O
cenário completo ocupa todo o capítulo 6. Da partilha milagrosa dos pães (vv. 1-15)
passa-se à cena de Jesus caminhando por sobre as águas (vv. 16-21 – curiosamente,
houve quem, no dia seguinte, pedisse-lhe sinais) e, depois disso, um grande
debate, que termina com muitos discípulos escandalizados e abandonando o mestre
(vv. 60-66), uma profissão de fé dos apóstolos (vv. 67-69) e um final que
revela um líder sofrendo a dor do abandono (vv. 67-71). Ou seja, a grande
revelação de Cristo – “Eu sou o pão da vida!” (v. 35) – não trouxe alegria e
conforto ao coração de seus seguidores, mas incompreensão, medo, divisão, fuga
e constrangimento.
Ora, o que causou esse
desencontro? Até ali, muitos seguiam o Mestre. O que os afastou? O desejo de
poder e a falta de empatia. Desde o início, queriam controlar Jesus. No v. 15, tentaram
“arrebatá-lo” para torná-lo rei. Vendo que não podem controlá-lo, os discípulos
procuram dispensá-lo, colocá-lo em segundo plano, agindo por conta própria (episódio
do barco). Lembremos que, num texto paralelo (Mt 14,22-33), Pedro procura mostrar-se
igual ao Nazareno (e literalmente afunda tentando). Cientes de que não
conseguem enquadrá-lo, então buscam garantir-se por suas próprias ações: “Que
faremos para realizar as obras de Deus (e alcançarmos a vida eterna)?” (v.
28). A resposta: “Acreditem em mim (em vez de tentar me controlar)!” É
então que lhe pedem um sinal (ainda uma tentativa de dar as cartas, ditas as
regras). E aí vem a história do Pão do Céu (vv. 33-35). Os fariseus usam,
então, uma tática conhecida hoje como “envenenando o poço”: “Que pão do céu
o quê? Esse aí é o filho do José!” (v. 42). É neste momento que Jesus sobe o
tom: “comam a minha carne” (v. 51), “bebam meu sangue” (v. 53).
A partir disso, muitos se
escandalizam e deixam de seguir a Cristo. Meu palpite: eles entenderam
exatamente cada palavra do Messias. Comer a carne, beber o sangue significava
ter o mesmo destino que seu Mestre. Importante saber que o evangelho de João é
escrito décadas após sua morte e ressurreição. Quem lia, naquele momento, identificava
os irmãos e irmãs na fé que recuaram diante das provações. Era um tempo de
perseguição. Quem insistisse no “Caminho” chegaria inevitavelmente na Cruz. É
nesse contexto que quem permaneceu fiel – os apóstolos – reconhece nas “palavras
de vida eterna” um motivo para prosseguir. Lembremos que João começa seu
evangelho dizendo que, no princípio, era a Palavra, e a Palavra se fez carne, e
por ela tudo se fez... Ou seja, não é qualquer palavra, mas a Palavra que leva
os fiéis à “criação” de um mundo.
Comer o pão, em si, não
significa nada. Ter assegurado o direito de comungar não vale nada se o
critério for pertencer ao seleto grupo dos “santos e santas” de Deus. Vale
lembrar que, instantes depois, Jesus aparenta desprezar a carne: “O espírito
vivifica...” (v. 63). Ou seja, a verdadeira comunhão não é a matéria em si, mas
o Espírito que a transforma em Palavra criadora. Comungá-la não está atrelado a
complexas regras de quem pode ou não pode, mas ao efeito que ela deve causar em
quem nela acredita.
Quando penso que, hoje,
uma parcela considerável do mundo cristão comemora a “posse” do corpo e sangue
de Cristo, fico pensando: e as outras denominações? E os não-cristãos? Ter a
hóstia não deveria ser sinal de privilégio, mas de serviço. Estar a serviço da Palavra
criadora: isso é que importa! Estar a serviço do próximo, seja quem for o
próximo (lembremos que “havia outras barcas com eles” [v. 23]). Estar a serviço
da vida!
E só pra concluir: Se hoje há vidas
indefesas, elas importam, sim! Mais que as outras? Não! Nem menos! Uma historinha
de internet conta que dois rapazes estavam diante de uma casa em chamas. Um
deles resolveu ajudar. Então rolou o seguinte diálogo:
— Ei, e a minha casa? Por
que você não vem à minha casa?
— Ela também está em
chamas?
— Não!
— Então venha! Precisamos
ajudar esta aqui!
— Peraí! Você está
dizendo que a minha casa não importa?
Quem, neste momento, alega que afirmar a importância das vidas negras é menosprezar as outras vidas, ou não entendeu a realidade que o cerca, ou está sendo egoísta. Quem comunga deveria entender a diferença...