sábado, 9 de maio de 2020

A LIÇÃO DE ESDRAS E NEEMIAS: COMO SE CRIA UM NÃO-POVO

Dando continuidade ao debate do texto anterior, segue o texto que é paralelo ao segundo vídeo produzido por mim, visando a uma série sobre a formação do povo brasileiro. Boa leitura!!!

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Quando a secretária da cultura (novamente as minúsculas), cujo ingresso no governo se deu para substituir um homem que alegou ter reproduzido “sem querer” os efeitos estéticos de uma propaganda nazista, vai a público ridicularizar a dor das famílias dos mortos pela ditadura, fica evidente que este não é um governo para todos e todas. E se essa ex-atriz decide não dizer uma palavra pelas mortes de artistas da envergadura de Flávio Migliaccio, Aldir Blanc, Moraes Moreira e Rubem Fonseca – “coincidentemente” considerados persona non grata no período da ditadura militar – quando seu “chefe supremo” dedica os pêsames a Mr. Reaça e se solidariza com Gusttavo Lima por ser notificado após embriagar-se fazendo propaganda de cerveja em sua live – ambos apoiadores do mito –, não resta mais dúvida de que estamos diante de um governo egoico e – dada sua devoção a regimes militares – facínora.

Agora some a isso os discursos eleitorais (e de antes, muito antes ainda) do presidento: “É preciso matar uns 30 mil”; “vai morrer inocente? Azar...”; “vamos metralhar a petralhada”; “não te estupro porque você não merece”; “filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento”; “quilombola não serve nem pra procriar”; “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”; etc. Diante disso, a primeira pergunta talvez fosse: quem é digno de fazer parte de um grupinho tão seleto? Mas a esta tentei responder no texto anterior. Parece-me óbvio que quem não consta lá compõe o restante do povo brasileiro. Então a pergunta que devemos fazer agora é: como o governo lida com esse “resto”?

Diretamente, parece que tudo não passa de bravata. Uma bravata cruel, do tipo que reverencia um torturador como Brilhante Ustra. Mas indiretamente as consequências são terríveis. Camponeses, mulheres, pessoas trans, índios, quilombolas... Os números de violência e assassinatos dispararam de 2019 para cá. Como entoou Clara Nunes: “O povo desta terra, quando pode cantar, canta de dor”. E haja subnotificação e sonegação de informações. Não fosse o CIMI e o COMIN, a CPT, o Atlas da Violência (em que pese o IPEA ser um órgão governamental) e outras entidades, não teríamos como refutar a propaganda do governo, que se gaba de ter os melhores índices de segurança de todos os tempos. Óbvio: Assim como na ditadura, o que não tem registro não aconteceu.

Mas isso não é novidade! Que estamos sob o comando de um grupo genocida empenhado em defender apenas os próprios interesses, também não. E é justamente aí que reside o problema. Desde os tempos do Deus dos Exércitos, aquele que mandou Josué passar outros povos ao fio da espada, que “as minorias se adequam, ou simplesmente desaparecem”.

Quando Esdras e Neemias, cada um a seu tempo, tiveram a incumbência de reconstruir Judá, tomaram medidas um tanto quanto extremas. Os estrangeiros (não-judeus) deveriam deixar o reino – ou melhor: aquela pequena província que outrora fora um reino e agora pertencia a uma satrapia persa – imediatamente. Se fossem homens, deveriam levar a família toda, mesmo que suas mulheres fossem judias. Se mulheres, seguiriam com seus filhos para o exílio, mas o marido (judeu) poderia ficar. Por que ninguém achou isso absurdo na época? Ora, o povo simples deve ter achado. Mas os registros foram feitos por quem sabia ler e escrever, ou seja, a parte intelectual dos funcionários públicos de então – os escribas. Como convencê-los a fazer uma boa propaganda do governo? Prometendo a reconstrução do templo (destruído na época da invasão babilônica), talvez? Será que conseguimos identificar ações semelhantes em nossos dias?

A restauração do culto a Javé por meio da reconstrução do templo foi uma maneira de restabelecer o poder da elite judaica deportada durante o domínio dos babilônios. Naquele momento, o sequestro da corte do rei Joaquim (especialmente oficiais militares e casta sacerdotal) proporcionou uma oportunidade única aos pobres que permaneceram na terra, liderados pelo profeta Jeremias (Aldir Blanc?). Dali até o tempo de Neemias (a personagem, não o livro) foram 60 anos aproximadamente. Seguramente, quem foi para o exílio já não era mais vivo ao fim dele. As outrora ricas e extensas propriedades, abandonadas durante esse período, foram ocupadas naturalmente pelos remanescentes e por imigrantes que foram se achegando aos poucos. No Brasil não chegamos a ter uma reforma agrária. Mas programas como o Minha Casa, Minha Vida e o Bolsa Família, bem como as garantias de soberania dos territórios indígenas e quilombolas, foram oportunidades concretas de redistribuição (ou manutenção) de terra e de poder econômico. Regressando do cativeiro, os filhos dos exilados retomaram os privilégios de seus pais forjando um direito divino à herança e condenando ao exílio os “impuros” invasores de suas terras. Foi nesse instante que surgiu a noção de raça judaica pura. E com a bênção do rei estrangeiro. Os tiraninhos (Esdras e Neemias) tinham carta branca para reconstruir o templo, desde que não restaurassem a monarquia de Judá (não sonhassem com a independência) e rezassem diariamente no novo templo (através de Edir Macedo, Malafaia e seus outros sacerdotes?) pela saúde do tirano-mor (Trump?), o rei persa, ou melhor, o verdadeiro rei.

Se você acha um salto muito grande transpor o quarto século a.C. para o XXI d.C., então vamos pensar na formação do povo brasileiro. Proponho uma curta viagem pela literatura, já que é a especialidade da casa. No século XVIII, quando a Inconfidência Mineira começa a indicar o desejo de independência da coroa portuguesa, duas obras narrativas – O Uraguai (Basílio da Gama) e O Caramuru (Santa Rita Durão) apontam para os índios como bestas-feras, seres inferiores. Bem é verdade que o romantismo tenta alçá-los, com obras como Iracema e O Guarani (José de Alencar) à condição de heróis, mas totalmente descaracterizados (cristianizados e movidos por um espírito “civilizado” e civilizatório). Castro Alves denuncia, com seu Navio Negreiro, a prática ainda comum do tráfico humano, mas com vistas a derrubar a monarquia, de economia escravagista, para que então viesse a república. Que os negros não eram o real motivo da preocupação dos republicanos, sugere-o o silêncio sobre Úrsula, obra abolicionista da professora maranhense Maria Firmino. Aluízio Azevedo, Monteiro Lobato e Euclides da Cunha defendem que um dos maiores problemas sociais do Brasil não seria a desigualdade, mas a mistura de raças. Segundo eles, o Brasil não teria como dar certo porque a maioria da população era formada por mulatas sensuais e caboclos (os verdadeiros sertanejos) vadios e desprovidos de cérebro. Mesmo Mário de Andrade, progressista, ao representar o povo brasileiro nas cores de Macunaíma – que aliás era de todas as cores (preto, vermelho e branco) – define-o como o herói “sem nenhum caráter”, isto é, sem nenhuma característica.

Será impossível perceber que influência tem essa “herança” cultural sobre o modo como vemos nossos pobres hoje? Brecht diria:

“Quem é teu inimigo?
O que tem fome e te rouba o último pedaço de pão
chama-o teu inimigo.
Mas não salta ao pescoço
De teu ladrão que nunca teve fome.”

Será que forço a barra ao dizer que é mais fácil – e conveniente – convencer uma parcela privilegiada da população de que é vontade de Deus eliminar os “sujos” e maltrapilhos inimigos da nação e fazer prosperar aqueles que, apesar de toda sua iniquidade, garantem a prosperidade da economia mundial? E o mais importante: como desconstruir esse pensamento hegemônico e fazer surgir um novo céu, um novo tempo, uma terra sem males?

2 comentários:

  1. Hoje estive na Praça para uma grande novidade: Fora Bolsonaro em minha terra bolsonarista !
    50 pessoas intelectuais! Ninguém deigreja, ninguém de periferia.Vou salvar e ler com carinho seu texto. Quem sabe encontro respostas.
    Passei 45 anos fora de minha terra e não consigo fazer nada pelo povo daqui

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