Ok, lá vamos nós de novo! Bloguear está meio fora de moda, mas gosto de escrever. Embora esteja tentando me adaptar aos novos tempos (youtube e quarentena), sinto que falta alguma coisa. Então vou tentar complementar meus vídeos com artigos publicados neste espaço e vice-versa.
Estou iniciando uma série sobre o povo brasileiro. Já lancei dois vídeos (mais descontraídos, pois confesso que o objetivo primeiro era chegar aos jovens de grupos de base). Este texto corresponde ao primeiro deles (confira aqui). Boa leitura!!!
Ah, e quem quiser contribuir com críticas (construtivas) e comentários, estes serão bem-vindos, pois o debate é sempre produtivo!
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Que a peleia entre Moro e
Bolsonaro é uma disputa pelo poder, com vistas ao pleito de 2022, não restam
dúvidas. Porém, o embate entre seus séquitos levanta uma questão: quem é,
afinal de contas, o povo brasileiro? Ou melhor: quem merece ser considerado povo?
Durante as últimas manifestações
em prol da intervenção militar – que o presidento (com minúscula mesmo) diz não
ter convocado, mas às quais está sempre presente –, tem sido constantemente
entoada uma espécie de bordão: “agora é o povo no poder”. A frase
é típica de um líder populista. Entretanto, devemos entender bem o seu
contexto. Allan dos Santos, youtuber com milhares de seguidores, promove
um curso chamado O Povo no Poder. Acreditem: a semelhança não é mera
coincidência. Esse ex-seminarista e moralista autoproclamado cristão é um
potente porta-voz das ideias olavistas e contumaz defensor do clã Bolsonaro. Em
um de seus recentes tweets (21/04/2020), escreveu:
“ATENÇÃO: criem aplicativos e localizem quem comemora e promove o
comunismo. Assim que o STF decidir, poderemos caçar essas pessoas
e:
- prendê-las;
- ‘linchá-las’ nas redes socias;
- publicar seus endereços
etc.”
Some-se a isso ideias como: “Bastam um
soldado e um cabo para fechar o STF”; “Tem que estudar como fazê-lo” (um novo
AI-5); “Vamos metralhar a petezada do Acre”; “Brasil, ame-o ou deixe-o!”
(também conhecido como: “Vai pra Cuba!”); e veremos, a qualquer momento,
emergir o Monstro da Lagoa (como na metáfora de Chico Buarque).
A essas alturas já dá pra perceber que
esse “povo” no poder não significa a totalidade do povo brasileiro, mas só um
clubinho dos eleitos. E não pensem que, do lado morista, a situação seja
diferente. A alcunha “vazajato” é proveniente de uma operação onde os fins
justificam os meios, quais sejam, se for para aniquilar o inimigo. O próprio
Moro admitiu ter quebrado uma ou duas regrinhas para garantir o bem “maior” (ou
seria o bem para os “maiorais”?) da sociedade. Seu séquito, no fundo, tem um
discurso idêntico ao do seu – agora – opositor. Tanto é que sua esposa afirmou,
certa vez, ver o então ministro e o Coiso como “uma coisa só”. E a cena de
confronto entre as duas facções – ambas vestindo verde e amarelo – no último
domingo só confirma as semelhanças.
Mas então quem é esse povo? As falas
mais recentes do Sr. Jair “resolvem” o mistério.
Depois
de delimitar quem são seus ouvintes:
“Tô na rampa, dentro da minha casa,
a casa do povo”;
Ele
declarou:
“Peço a Deus que não
tenhamos problema nesta semana”;
E
disparou suas clássicas ameaças:
“Chegamos ao limite. Não tem mais
conversa. Daqui pra frente não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela
será cumprida a qualquer preço.”
A referência a Deus e o uso do “nós” são indicativos de que
somente quem o segue fará parte do povo eleito, numa nova terra prometida. E
que ela será implantada a qualquer preço, ou seja, “matando uns 30 mil...”
A bandeira de Israel nas
manifestações “patrióticas” confirma a legitimidade da comparação com Moisés
(embora o combativo governante prefira se igualar ao Messias, mesmo sem
saber fazer milagres...). Dizer que “o que era velho ficou para trás” também é referência bíblica
(farei um novo Céu e uma nova Terra). Só que, como é comum aos
fundamentalistas, trata-se de uma leitura que mistura a linha teológica do Deus
vingativo, Deus dos Exércitos, com a do ABBA (não confundir com o nome da banda
sueca!), Deus-Pai, conforme as conveniências.
E por que, necessariamente, há
uma relação entre o “povo” (morista ou bolsonarista) e a Bíblia? Porque a
imagem de um povo que marcha contra tudo e contra todos, amparado unicamente
por seu Deus, um ser ciumento e Todo-Poderoso, que ordena passar os infiéis
pagãos ao fio da espada casa perfeitamente com ideologias autoritárias. É assim
em praticamente todas as teocracias. Foi assim com os golpes militares que
tomaram a América Latina, nas décadas de 60 e 70. E foi em nome de Deus que Hitler
exterminou tantos judeus. Não é por acaso que, na Curitiba de nossos dias, uma socialite
queira impor a quem está respeitando a quarentena que use uma fita vermelha no
braço para ser identificado e não ter o direito à assistência médica, já que
escolheu não “contribuir” (sic) durante este período. Essa ideia levou a
Auschwitz e está intimamente ligada à mentalidade da raça pura, também presente
na Bíblia.
O discurso de Moro, se é mais
contido, não deixa de ter os mesmos elementos. Por exemplo, ao rebater as críticas
de Rodrigo Maia ao seu projeto de lei anticrime, ano passado, ele disse:
“Talvez alguns entendam que o combate
ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro
não aguenta mais. Essas questões sempre foram tratadas com respeito e
cordialidade com o Presidente da Câmara, e espero que o mesmo possa ocorrer com
o projeto e com quem o propôs. Não por questões pessoais, mas por respeito ao
cargo e ao amplo desejo do povo brasileiro de viver em um país
menos corrupto e mais seguro.”
O pacote em questão trouxe à tona o
problema da tal excludente de ilicitude. Na prática bastaria, por exemplo, os
militares que dispararam 80 vezes “por engano” naquele “acidente” que matou um
músico no RJ alegarem ter agido com excesso de violência por “medo, surpresa ou
violenta emoção”. Sabendo da desigualdade que vigora no Brasil – e que a ação
dos policiais não ocorre na favela da mesma forma que nos bairros nobres –
soldados da PM não precisariam mais justificar o extermínio de pessoas pobres e
negras largando um “confundi o guarda-chuva com um fuzil”. Em tempo: esse item
foi vetado pelo Congresso, mas ainda tramitam novas PLs de Bolsonaro, tentando “ressuscitá-lo”
nas GLO (Garantias da Lei e da Ordem), aplicando-o, por exemplo, no combate às “desordeiras”
manifestações sindicais. Resumindo: o “amplo desejo do povo brasileiro”, seja
ele morista ou bolsonarista, seria exterminar quem não faz (ou não deveria
fazer) parte do povo brasileiro.
Ah, mas falta um elemento aí! Cadê o caráter
divino da missão salvífica do superministro? Pois bem! Ele termina sua réplica
ao Presidente da Câmara dizendo: “Que Deus abençoe essa grande nação.”
Ora, não é preciso autoproclamar-se enviado de Deus depois desse gran finale.
De resto, observe-se que Padre Ricardo, Malafaia, Edir Macedo e outros
da mesma laia o apoiam tanto quanto ao autoproclamado líder supremo da nação.
Se agora criticam o homem da toga, fazem-no como a um filho mais novo que está
fazendo pirraça ao irmão mais velho. Ter aprisionado Luís Inácio Lula da Silva
– o comunista-mor – ainda lhe confere uma aura de homem santo, enviado de Deus
para trazer justiça a toda a Terra.
Controlar as pessoas pela fé
sempre foi um método eficaz. A esperança da eterna recompensa e o medo da
danação eterna mantêm, ainda hoje, o rebanho sob as ordens do pastor. Foi dessa
forma que os reis mantinham, no período medieval, as coisas exatamente do jeito
como estavam. Se o plebeu, em vez de aspirar à nobreza, devia a esta servir
lealmente, não era porque assim determinava o rei, mas por imposição da vontade
divina. Mentalidade de rebanho, de gado. Gado não critica. Gado só obedece. Com
algumas variáveis, a teologia da retribuição, trajada agora de teologia da
prosperidade, continua ainda hoje entranhada na vida de boa parte da população.
A mais carente a ela se agarra para manter alguma esperança e, assim, poder
suportar as dificuldades e impossibilidades do dia a dia. A classe média,
especialmente a baixa, ressentida, para aliviar sua consciência e também por
acreditar que merece favores divinos. Afinal, segundo ela mesma, quem movimenta
a economia do país, quem faz a roda da vida girar? E o pastor? Ora, o pastor
quer o cartão de crédito! Mas com a senha! Senão a graça não vem...
A diferença é que, agora, não se
espera mais que Deus dê a cada um, cada uma conforme suas obras, mas que Deus
dê para mim. E que o outro, o inimigo seja eliminado. Ao fio da espada.
Bolsonaro já disse: “minha especialidade é matar”. O comentário não carece de
explicações. Moro parece mais polido. Entretanto, sua espada é igualmente
assassina. Se não tira a vida do oponente, destrói sua imagem, o que – em pleno
século XXI – quer dizer a mesma coisa. Tem a toda poderosa Globo à sua
disposição e sabe muito bem como usá-la.
E essa é a máxima do atual
momento brasileiro. Quem pertence ao “povo” viverá, e a verdade o libertará (e
a verdade é que um defensor dos direitos humanos não é páreo para uma
escopeta). Aos demais, o fio da espada, real ou virtual. Quem são os demais?
Isto é, quem é o não-povo? Esse é o tema da nossa próxima conversa...
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