terça-feira, 5 de maio de 2020

MORO vs. BOLSONARO: QUEM É O POVO BRASILEIRO?

Ok, lá vamos nós de novo! Bloguear está meio fora de moda, mas gosto de escrever. Embora esteja tentando me adaptar aos novos tempos (youtube e quarentena), sinto que falta alguma coisa. Então vou tentar complementar meus vídeos com artigos publicados neste espaço e vice-versa.

Estou iniciando uma série sobre o povo brasileiro. Já lancei dois vídeos (mais descontraídos, pois confesso que o objetivo primeiro era chegar aos jovens de grupos de base). Este texto corresponde ao primeiro deles (confira aqui). Boa leitura!!!

Ah, e quem quiser contribuir com críticas (construtivas) e comentários, estes serão bem-vindos, pois o debate é sempre produtivo!

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Que a peleia entre Moro e Bolsonaro é uma disputa pelo poder, com vistas ao pleito de 2022, não restam dúvidas. Porém, o embate entre seus séquitos levanta uma questão: quem é, afinal de contas, o povo brasileiro? Ou melhor: quem merece ser considerado povo?

Durante as últimas manifestações em prol da intervenção militar – que o presidento (com minúscula mesmo) diz não ter convocado, mas às quais está sempre presente –, tem sido constantemente entoada uma espécie de bordão: “agora é o povo no poder”. A frase é típica de um líder populista. Entretanto, devemos entender bem o seu contexto. Allan dos Santos, youtuber com milhares de seguidores, promove um curso chamado O Povo no Poder. Acreditem: a semelhança não é mera coincidência. Esse ex-seminarista e moralista autoproclamado cristão é um potente porta-voz das ideias olavistas e contumaz defensor do clã Bolsonaro. Em um de seus recentes tweets (21/04/2020), escreveu:

“ATENÇÃO: criem aplicativos e localizem quem comemora e promove o comunismo. Assim que o STF decidir, poderemos caçar essas pessoas e:
- prendê-las;
- ‘linchá-las’ nas redes socias;
- publicar seus endereços etc.”

Some-se a isso ideias como: “Bastam um soldado e um cabo para fechar o STF”; “Tem que estudar como fazê-lo” (um novo AI-5); “Vamos metralhar a petezada do Acre”; “Brasil, ame-o ou deixe-o!” (também conhecido como: “Vai pra Cuba!”); e veremos, a qualquer momento, emergir o Monstro da Lagoa (como na metáfora de Chico Buarque).

A essas alturas já dá pra perceber que esse “povo” no poder não significa a totalidade do povo brasileiro, mas só um clubinho dos eleitos. E não pensem que, do lado morista, a situação seja diferente. A alcunha “vazajato” é proveniente de uma operação onde os fins justificam os meios, quais sejam, se for para aniquilar o inimigo. O próprio Moro admitiu ter quebrado uma ou duas regrinhas para garantir o bem “maior” (ou seria o bem para os “maiorais”?) da sociedade. Seu séquito, no fundo, tem um discurso idêntico ao do seu – agora – opositor. Tanto é que sua esposa afirmou, certa vez, ver o então ministro e o Coiso como “uma coisa só”. E a cena de confronto entre as duas facções – ambas vestindo verde e amarelo – no último domingo só confirma as semelhanças.

Mas então quem é esse povo? As falas mais recentes do Sr. Jair “resolvem” o mistério.

Depois de delimitar quem são seus ouvintes:
Tô na rampa, dentro da minha casa, a casa do povo”;

Ele declarou:
Peço a Deus que não tenhamos problema nesta semana”;

E disparou suas clássicas ameaças:
Chegamos ao limite. Não tem mais conversa. Daqui pra frente não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço.”

A referência a Deus e o uso do “nós” são indicativos de que somente quem o segue fará parte do povo eleito, numa nova terra prometida. E que ela será implantada a qualquer preço, ou seja, “matando uns 30 mil...”

A bandeira de Israel nas manifestações “patrióticas” confirma a legitimidade da comparação com Moisés (embora o combativo governante prefira se igualar ao Messias, mesmo sem saber fazer milagres...). Dizer que “o que era velho ficou para trás” também é referência bíblica (farei um novo Céu e uma nova Terra). Só que, como é comum aos fundamentalistas, trata-se de uma leitura que mistura a linha teológica do Deus vingativo, Deus dos Exércitos, com a do ABBA (não confundir com o nome da banda sueca!), Deus-Pai, conforme as conveniências.

E por que, necessariamente, há uma relação entre o “povo” (morista ou bolsonarista) e a Bíblia? Porque a imagem de um povo que marcha contra tudo e contra todos, amparado unicamente por seu Deus, um ser ciumento e Todo-Poderoso, que ordena passar os infiéis pagãos ao fio da espada casa perfeitamente com ideologias autoritárias. É assim em praticamente todas as teocracias. Foi assim com os golpes militares que tomaram a América Latina, nas décadas de 60 e 70. E foi em nome de Deus que Hitler exterminou tantos judeus. Não é por acaso que, na Curitiba de nossos dias, uma socialite queira impor a quem está respeitando a quarentena que use uma fita vermelha no braço para ser identificado e não ter o direito à assistência médica, já que escolheu não “contribuir” (sic) durante este período. Essa ideia levou a Auschwitz e está intimamente ligada à mentalidade da raça pura, também presente na Bíblia.

O discurso de Moro, se é mais contido, não deixa de ter os mesmos elementos. Por exemplo, ao rebater as críticas de Rodrigo Maia ao seu projeto de lei anticrime, ano passado, ele disse:

“Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais. Essas questões sempre foram tratadas com respeito e cordialidade com o Presidente da Câmara, e espero que o mesmo possa ocorrer com o projeto e com quem o propôs. Não por questões pessoais, mas por respeito ao cargo e ao amplo desejo do povo brasileiro de viver em um país menos corrupto e mais seguro.”

O pacote em questão trouxe à tona o problema da tal excludente de ilicitude. Na prática bastaria, por exemplo, os militares que dispararam 80 vezes “por engano” naquele “acidente” que matou um músico no RJ alegarem ter agido com excesso de violência por “medo, surpresa ou violenta emoção”. Sabendo da desigualdade que vigora no Brasil – e que a ação dos policiais não ocorre na favela da mesma forma que nos bairros nobres – soldados da PM não precisariam mais justificar o extermínio de pessoas pobres e negras largando um “confundi o guarda-chuva com um fuzil”. Em tempo: esse item foi vetado pelo Congresso, mas ainda tramitam novas PLs de Bolsonaro, tentando “ressuscitá-lo” nas GLO (Garantias da Lei e da Ordem), aplicando-o, por exemplo, no combate às “desordeiras” manifestações sindicais. Resumindo: o “amplo desejo do povo brasileiro”, seja ele morista ou bolsonarista, seria exterminar quem não faz (ou não deveria fazer) parte do povo brasileiro.
Ah, mas falta um elemento aí! Cadê o caráter divino da missão salvífica do superministro? Pois bem! Ele termina sua réplica ao Presidente da Câmara dizendo: “Que Deus abençoe essa grande nação.” Ora, não é preciso autoproclamar-se enviado de Deus depois desse gran finale. De resto, observe-se que Padre Ricardo, Malafaia, Edir Macedo e outros da mesma laia o apoiam tanto quanto ao autoproclamado líder supremo da nação. Se agora criticam o homem da toga, fazem-no como a um filho mais novo que está fazendo pirraça ao irmão mais velho. Ter aprisionado Luís Inácio Lula da Silva – o comunista-mor – ainda lhe confere uma aura de homem santo, enviado de Deus para trazer justiça a toda a Terra.

Controlar as pessoas pela fé sempre foi um método eficaz. A esperança da eterna recompensa e o medo da danação eterna mantêm, ainda hoje, o rebanho sob as ordens do pastor. Foi dessa forma que os reis mantinham, no período medieval, as coisas exatamente do jeito como estavam. Se o plebeu, em vez de aspirar à nobreza, devia a esta servir lealmente, não era porque assim determinava o rei, mas por imposição da vontade divina. Mentalidade de rebanho, de gado. Gado não critica. Gado só obedece. Com algumas variáveis, a teologia da retribuição, trajada agora de teologia da prosperidade, continua ainda hoje entranhada na vida de boa parte da população. A mais carente a ela se agarra para manter alguma esperança e, assim, poder suportar as dificuldades e impossibilidades do dia a dia. A classe média, especialmente a baixa, ressentida, para aliviar sua consciência e também por acreditar que merece favores divinos. Afinal, segundo ela mesma, quem movimenta a economia do país, quem faz a roda da vida girar? E o pastor? Ora, o pastor quer o cartão de crédito! Mas com a senha! Senão a graça não vem...

A diferença é que, agora, não se espera mais que Deus dê a cada um, cada uma conforme suas obras, mas que Deus dê para mim. E que o outro, o inimigo seja eliminado. Ao fio da espada. Bolsonaro já disse: “minha especialidade é matar”. O comentário não carece de explicações. Moro parece mais polido. Entretanto, sua espada é igualmente assassina. Se não tira a vida do oponente, destrói sua imagem, o que – em pleno século XXI – quer dizer a mesma coisa. Tem a toda poderosa Globo à sua disposição e sabe muito bem como usá-la.

E essa é a máxima do atual momento brasileiro. Quem pertence ao “povo” viverá, e a verdade o libertará (e a verdade é que um defensor dos direitos humanos não é páreo para uma escopeta). Aos demais, o fio da espada, real ou virtual. Quem são os demais? Isto é, quem é o não-povo? Esse é o tema da nossa próxima conversa...

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