Dando continuidade ao debate do texto anterior, segue o texto que é paralelo ao segundo vídeo produzido por mim, visando a uma série sobre a formação do povo brasileiro. Boa leitura!!!
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Quando a secretária da cultura (novamente
as minúsculas), cujo ingresso no governo se deu para substituir um homem que
alegou ter reproduzido “sem querer” os efeitos estéticos de uma propaganda
nazista, vai a público ridicularizar a dor das famílias dos mortos pela ditadura,
fica evidente que este não é um governo para todos e todas. E se essa ex-atriz
decide não dizer uma palavra pelas mortes de artistas da envergadura de Flávio
Migliaccio, Aldir Blanc, Moraes Moreira e Rubem Fonseca – “coincidentemente” considerados
persona non grata no período da ditadura militar – quando seu “chefe
supremo” dedica os pêsames a Mr. Reaça e se solidariza com Gusttavo Lima por
ser notificado após embriagar-se fazendo propaganda de cerveja em sua live
– ambos apoiadores do mito –, não resta mais dúvida de que estamos diante
de um governo egoico e – dada sua devoção a regimes militares – facínora.
Agora some a isso os discursos eleitorais
(e de antes, muito antes ainda) do presidento: “É preciso matar uns 30 mil”; “vai
morrer inocente? Azar...”; “vamos metralhar a petralhada”; “não te estupro porque
você não merece”; “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento”;
“quilombola não serve nem pra procriar”; “cada vez mais o índio é um ser humano
igual a nós”; etc. Diante disso, a primeira pergunta talvez fosse: quem é digno
de fazer parte de um grupinho tão seleto? Mas a esta tentei responder no texto
anterior. Parece-me óbvio que quem não consta lá compõe o restante do povo
brasileiro. Então a pergunta que devemos fazer agora é: como o governo lida com
esse “resto”?
Diretamente, parece que tudo não
passa de bravata. Uma bravata cruel, do tipo que reverencia um torturador como
Brilhante Ustra. Mas indiretamente as consequências são terríveis. Camponeses,
mulheres, pessoas trans, índios, quilombolas... Os números de violência e assassinatos
dispararam de 2019 para cá. Como entoou Clara Nunes: “O povo desta terra,
quando pode cantar, canta de dor”. E haja subnotificação e sonegação de
informações. Não fosse o CIMI e o COMIN, a CPT, o Atlas da Violência (em que
pese o IPEA ser um órgão governamental) e outras entidades, não teríamos como
refutar a propaganda do governo, que se gaba de ter os melhores índices de
segurança de todos os tempos. Óbvio: Assim como na ditadura, o que não tem
registro não aconteceu.
Mas isso não é novidade! Que estamos
sob o comando de um grupo genocida empenhado em defender apenas os próprios
interesses, também não. E é justamente aí que reside o problema. Desde os
tempos do Deus dos Exércitos, aquele que mandou Josué passar outros povos ao
fio da espada, que “as minorias se adequam, ou simplesmente desaparecem”.
Quando Esdras e Neemias, cada um
a seu tempo, tiveram a incumbência de reconstruir Judá, tomaram medidas um
tanto quanto extremas. Os estrangeiros (não-judeus) deveriam deixar o reino – ou
melhor: aquela pequena província que outrora fora um reino e agora pertencia a
uma satrapia persa – imediatamente. Se fossem homens, deveriam levar a família
toda, mesmo que suas mulheres fossem judias. Se mulheres, seguiriam com seus
filhos para o exílio, mas o marido (judeu) poderia ficar. Por que ninguém achou
isso absurdo na época? Ora, o povo simples deve ter achado. Mas os registros
foram feitos por quem sabia ler e escrever, ou seja, a parte intelectual dos
funcionários públicos de então – os escribas. Como convencê-los a fazer uma boa
propaganda do governo? Prometendo a reconstrução do templo (destruído na época
da invasão babilônica), talvez? Será que conseguimos identificar ações
semelhantes em nossos dias?
A restauração do culto a Javé por
meio da reconstrução do templo foi uma maneira de restabelecer o poder da elite
judaica deportada durante o domínio dos babilônios. Naquele momento, o
sequestro da corte do rei Joaquim (especialmente oficiais militares e casta
sacerdotal) proporcionou uma oportunidade única aos pobres que permaneceram na
terra, liderados pelo profeta Jeremias (Aldir Blanc?). Dali até o tempo de Neemias
(a personagem, não o livro) foram 60 anos aproximadamente. Seguramente, quem
foi para o exílio já não era mais vivo ao fim dele. As outrora ricas e extensas
propriedades, abandonadas durante esse período, foram ocupadas naturalmente pelos
remanescentes e por imigrantes que foram se achegando aos poucos. No Brasil não
chegamos a ter uma reforma agrária. Mas programas como o Minha Casa, Minha Vida
e o Bolsa Família, bem como as garantias de soberania dos territórios indígenas
e quilombolas, foram oportunidades concretas de redistribuição (ou manutenção) de
terra e de poder econômico. Regressando do cativeiro, os filhos dos exilados retomaram
os privilégios de seus pais forjando um direito divino à herança e condenando
ao exílio os “impuros” invasores de suas terras. Foi nesse instante que surgiu
a noção de raça judaica pura. E com a bênção do rei estrangeiro. Os tiraninhos
(Esdras e Neemias) tinham carta branca para reconstruir o templo, desde que não
restaurassem a monarquia de Judá (não sonhassem com a independência) e rezassem
diariamente no novo templo (através de Edir Macedo, Malafaia e seus outros
sacerdotes?) pela saúde do tirano-mor (Trump?), o rei persa, ou melhor, o
verdadeiro rei.
Se você acha um salto muito
grande transpor o quarto século a.C. para o XXI d.C., então vamos pensar na
formação do povo brasileiro. Proponho uma curta viagem pela literatura, já que
é a especialidade da casa. No século XVIII, quando a Inconfidência Mineira começa
a indicar o desejo de independência da coroa portuguesa, duas obras narrativas –
O Uraguai (Basílio da Gama) e O Caramuru (Santa Rita Durão)
apontam para os índios como bestas-feras, seres inferiores. Bem é verdade que o
romantismo tenta alçá-los, com obras como Iracema e O Guarani (José
de Alencar) à condição de heróis, mas totalmente descaracterizados (cristianizados
e movidos por um espírito “civilizado” e civilizatório). Castro Alves denuncia,
com seu Navio Negreiro, a prática ainda comum do tráfico humano, mas com
vistas a derrubar a monarquia, de economia escravagista, para que então viesse a
república. Que os negros não eram o real motivo da preocupação dos
republicanos, sugere-o o silêncio sobre Úrsula, obra abolicionista da
professora maranhense Maria Firmino. Aluízio Azevedo, Monteiro Lobato e
Euclides da Cunha defendem que um dos maiores problemas sociais do Brasil não seria
a desigualdade, mas a mistura de raças. Segundo eles, o Brasil não teria como
dar certo porque a maioria da população era formada por mulatas sensuais e
caboclos (os verdadeiros sertanejos) vadios e desprovidos de cérebro. Mesmo
Mário de Andrade, progressista, ao representar o povo brasileiro nas cores de
Macunaíma – que aliás era de todas as cores (preto, vermelho e branco) –
define-o como o herói “sem nenhum caráter”, isto é, sem nenhuma característica.
Será impossível perceber que
influência tem essa “herança” cultural sobre o modo como vemos nossos pobres hoje?
Brecht diria:
“Quem é teu inimigo?
O que tem fome e te rouba o último pedaço de pão
chama-o teu inimigo.
Mas não salta ao pescoço
De teu ladrão que nunca teve fome.”
Será que forço a barra ao dizer
que é mais fácil – e conveniente – convencer uma parcela privilegiada da
população de que é vontade de Deus eliminar os “sujos” e maltrapilhos inimigos
da nação e fazer prosperar aqueles que, apesar de toda sua iniquidade, garantem
a prosperidade da economia mundial? E o mais importante: como desconstruir esse
pensamento hegemônico e fazer surgir um novo céu, um novo tempo, uma terra sem
males?
Mano, bem forte essa crônica. Gostei...
ResponderExcluirHoje estive na Praça para uma grande novidade: Fora Bolsonaro em minha terra bolsonarista !
ResponderExcluir50 pessoas intelectuais! Ninguém deigreja, ninguém de periferia.Vou salvar e ler com carinho seu texto. Quem sabe encontro respostas.
Passei 45 anos fora de minha terra e não consigo fazer nada pelo povo daqui