Adoração dos Pastores - Pintura de Bartolomé Esteban Murillo |
O Evangelho falava do recenseamento que levou Maria e José a Belém e do
glorioso anúncio aos pastores (Lc 2,1-14).
Após a leitura, muito respeitosa, feita pelo diácono, levantou-se o padre e
solenemente tomou posse do que por direito era seu, isto é, o microfone. Vá lá
que o texto fosse pra lá de manjado, ultraconhecido, mas, a julgar pelo
silêncio da plateia, digo, dos fiéis, parecia que algo maravilhoso estava
prestes a ser anunciado. Embevecido pela atenção geral, o presidente começou
sua pregação.
De cara, a primeira alfinetada: “Quantas pessoas hoje estão comendo,
bebendo, fazendo festa e não tiveram tempo de vir a esta celebração; elas se
esqueceram de Jesus!” Pensei que o público acusaria o golpe, não por si, mas
pelos familiares que preferiram ficar em casa... nada! Então a artilharia
continuou: “Quantos pobres hoje não têm o que comer (ôpa! – pensei: tá
esquentando...), mas são felizes com o que possuem (ihhh...)!” Resumo da ópera:
um festival de senso comum. Natal não é tempo de ficar trocando presentes, mas
de ir à Igreja e dar glória a Deus. Se os pobres são capazes de ser felizes com
o que possuem, quanto mais nós que temos a honra de comungar Jesus todo
domingo. Só pode se dizer cristão quem segue os preceitos da Santa Igreja. Pensar
qualquer coisa além disso cheira a heresia...
Curioso que o herege é, por definição, quem vai contra os dogmas da
Igreja e os ensinamentos bíblicos. Pois bem, então vamos ao texto! Jesus foi
concebido, criado e se tornou o Messias na Galileia. Belém foi palco apenas de
seu nascimento. Assim, Lucas apresentava Jesus como o Filho de Davi, o menino
de que falava a 1ª leitura (Is 9,1-6).
Segundo Isaías, uma grande luz brilhou porque o Príncipe da Paz veio para
quebrar o jugo que oprimia o povo e restabelecer a Justiça. A Luz, portanto,
era a liberdade para os que viviam nas trevas, isto é, os oprimidos. O Salmo 95
e a carta a Tito – Tt 2,11-14, também
textos do dia, falavam do restabelecimento da Justiça como sinal de salvação. Agora,
não sei se vocês tiveram a mesma impressão, mas algo me diz que Justiça parece
ser uma palavra-chave para entendermos o texto de Lucas, não!?
Os textos também são unânimes em dizer que Jesus veio para todas e para
todos. Entretanto – e aí o padre tem razão –, nem todos o acolheram. O v.7 diz
que Jesus foi colocado numa manjedoura porque não havia lugar para ele (e sua
família) em hospedarias. Seria José o único descendente vivo de Davi? Ele não
tinha irmãos, primos, parentes que o pudessem acolher? O Evangelho de João
disse que Jesus veio para os seus, mas estes não o receberam (Jo 1,11). Talvez por isso, tempos
depois, Ele tenha dito: “Os sãos não precisam de médico” (Mc 2,17a). Uma ironia, certamente, já que os judeus (especialmente
fariseus e doutores da Lei) se consideravam os únicos dignos de pertencer ao
povo escolhido. Na cidade imperava a lógica do Templo, atrelado aos ritos de
purificação. Riqueza era sinal de bênção divina. Assim, os pobres eram
considerados impuros por sua própria condição. E como os puros deveriam viver
separados dos impuros, estes eram impelidos para fora das cidades. Ora, Jesus
nasce em Belém, mas fora da cidade. E quem é convidado a ir vê-lo? Algum citadino?
O anjo apareceu aos pastores, cuja experiência com o sagrado era de
opressão. Viviam no campo, expostos a inúmeras situações que os tornavam
impuros. Não admira que tivessem medo. Sempre que iam ao Templo, era para
negociar o rebanho ou purificar-se. O anjo, porém, disse-lhes que se
alegrassem. O momento era de glorificar a Deus. Um novo tempo, uma nova relação
deveria se estabelecer entre Deus e a humanidade, especialmente os pequeninos,
até então considerados amaldiçoados. Notem que o Templo fica de fora dessa.
Logo, essa história de que os salvos são aqueles que vão à missa todo domingo
não se sustenta pela Bíblia. O que determina a pertença ao povo de Deus é a
vida em comunidade, não a frequência às celebrações. Embora não tenha sido a
primeira a ser convidada, a comunidade dos pastores é a primeira a aceitar o
convite e fazer a experiência do Deus Menino.
Olhem que bela oportunidade! Hoje, as igrejas históricas estão se
esvaziando. O povo não aceita mais ameaças, nem que sejam referentes ao fogo
eterno. Duas fórmulas o atraem: 1) A mágica das curas e exorcismos; 2) Algo que
toque seu coração e dialogue com sua realidade. A primeira arrasta multidões,
mas seus efeitos logo passam. A segunda atrai menos, mas os efeitos são mais
duradouros porque transformam, de fato, a vida das pessoas. Em vez de
“aproveitar” a casa cheia para reclamar de quem só aparece em ocasiões
especiais, por que não dizer que a porta está sempre aberta? Por que não ir ao
encontro dos mais necessitados, celebrar com eles, na casa ou nas acomodações
deles? Se o objetivo é puxar a orelha, por que não questionar o motivo de, dois
mil e quatorze anos depois de serem acolhidos por Jesus, os pobres ainda serem
marginalizados e explorados? De qualquer forma, por que não anunciar que é um
tempo de alegria? Porque é isso que o Natal significa. Deus veio habitar entre
nós e, logo de cara, fez questão de mostrar que sua casa tem lugar para todas e
para todos, mesmo os que não seguem os preceitos religiosos tão à risca. Em
suma: Natal é tempo de anunciar que Deus veio ser um de nós para que toda a
humanidade se una a Ele.
Confesso que voltei pra casa irritado. O padre ficava reclamando da
quantidade de participantes na celebração, sem perceber que seu discurso metia
mais medo que amor e esperança no coração daquela gente. Se tivesse copiado o
exemplo do anjo, pelo menos: este percebeu que deveria tranquilizar seus
ouvintes antes de dar-lhes a Boa Nova. Ou se tivesse observado como Deus se fez
pequeno para acolher os mais pobres... Mas enfim, quando estava quase chegando
ao meu destino, antes de abrir o portão, pensei: “Ô Zé, deixa de ser besta!
Você parece até que tá querendo ensinar a missa ao vigário!”
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