Não
é de hoje que a Tradição, servindo à ideologia dominante, busca relativizar a
dimensão sociopolítica do Evangelho. Nesta época de Páscoa, em especial, onde a
liturgia atinge o seu ápice, beiram a heresia os esforços para negar o teor subversivo
da mensagem de Cristo. As celebrações são pietistas, e as relações, intimistas.
O individualismo e a falta de compromisso ditam as regras. Mas será esta a celebração
que Deus quer?
A Páscoa, do hebraico Pessach (= passagem), é uma festa “emprestada”
da cultura de alguns dos grupos fundadores das tribos de Israel. Sua origem
pode estar entre os pastores semi-nômades, que imolavam um cordeiro e usavam o
sangue para marcar os pórticos de entrada e saída do antigo acampamento, acreditando
assim aprisionarem os maus espíritos para que não os seguissem na busca por
novos pastos. Ou pode ter nascido entre os camponeses cananeus, que também possuíam
um rito de passagem. Na festa da colheita, trocavam a farinha velha por uma
nova. O fermento, porém, era um pedaço da antiga. Antes de “contaminar” a massa
nova, comiam-se os pães ázimos (não levedados), celebrando-se assim a renovação
da vida. Tempos depois, recontando a história da fuga dos hebreus, os autores
bíblicos adicionaram e fundiram as duas tradições, indicando que a saga do
Êxodo era a grande passagem da escravidão para a liberdade. Diante disso, não é
à toa que os evangelhos apontem essa data para a ressurreição de Cristo. Assim,
querem dizer que a Morte não tem a palavra definitiva, mas é só a passagem para
uma nova vida, ou melhor, para a Vida, sempre nova e eterna. Seja como for,
independente de cultura ou religião, a ideia é de movimento, ação, mudança.
Este
é justamente o problema da Tradição: mudar vai contra o seu princípio
fundamental, que é o de manter tudo do jeito como está. Mudanças são perigosas,
principalmente para quem está no poder. E o que é melhor para tornar inofensivo
um movimento revolucionário do que distorcê-lo? Por exemplo, dentre os
ensinamentos do “lava-pés”, escolhe-se exaltar a humildade de Cristo. Ora, eis
aí um termo ambíguo. É possível ser humilde e continuar explorando os outros.
Tem muito empresário que anda de sandália, mas é rico às custas do trabalho de
seus operários (que não usam sandálias por opção, mas pela necessidade). E o
que dizer do tradicionalíssimo “Deus
morreu por ti, no teu lugar”? Quem não se consumir pela culpa (por exemplo,
canta-se na via-sacra: “A morrer
crucificado, teu Jesus é condenado, por teus crimes[?], pecador...”)
pode chegar ao outro extremo, que é o de não se comprometer com nada. Afinal, o
que resta fazer quando o próprio Deus já expiou definitivamente nossos pecados
numa cruz? Seja como for, as coisas ficam sempre no campo do individualismo e
da subjetividade, que é a melhor maneira de impedir qualquer alteração da
realidade.
Como
romper com este ciclo, isto é, como realizar a passagem de uma vida alienada
para um pacto de compromisso com a Vida? Penso que o primeiro passo é buscar entender
os gestos de Jesus. A atitude de lavar os pés, segundo Ele mesmo explicou (Jo
13,12-17), é sinal de que o cristão deve estar a serviço. É possível ser humilde
e individualista ao mesmo tempo, mas não dá pra servir a si mesmo. Um outro se
faz necessário nessa relação, do qual devemos cuidar. Sim, mas... e aquela
“cláusula” que nos impede de agir (= Jesus morreu por nós...)? Paulo diz que: “livres do pecado, vos tornastes servos
da JUSTIÇA” (Rm 6,18). A
carta de Pedro vai no mesmo sentido: “Sobre
o madeiro, (Jesus) levou os nossos
pecados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos para os nossos pecados, vivêssemos
para a JUSTIÇA” (1Pd 2,24).
Vários outros textos nos remetem ao compromisso de, redimidos pela cruz,
buscarmos o direito dos pobres (órfãos, viúvas, doentes...). Segundo o profeta
Isaías (cf. Is 1,17; 58,6-8), isto é buscar a Justiça. Só mesmo uma leitura de
conveniência para ignorar essa importante premissa, complementar à velha máxima
de que Cristo morreu em nosso lugar. Portanto, resumindo, nossa missão é servir
à próxima, ao próximo, buscando a Justiça e o Direito. Esse, no fim das contas,
é o real significado da Páscoa.
Por
isso, quando formos celebrar a festa maior das cristãs e dos cristãos, devemos
saber em que implica, necessariamente, desejar uma boa Páscoa. Convido você a
tornar clara sua mensagem. Se pactuar com o que vai escrito por estas linhas, externe
às pessoas o que realmente deseja quando lhes diz “Feliz Páscoa”. A vizinha
pode entender isso como uma saudação cordial, aquilo que se deve dizer nessas
ocasiões, algo sem outro sentido além de cumprir um rito social. Seu sobrinho
pode achar que você deseja vê-lo ganhar muito chocolate. A pessoa amada pode
estar pensando que você quer celebrar essa data ao lado dela por muitos anos.
Bom, “Feliz Páscoa” pode ser isso também. Mas não pode deixar de ser passagem.
Um tempo de mudança, de conversão. Um tempo de repensar nossas relações e o que
temos feito uns pelos outros. Só assim nossas saudações, trocas de presentes e
festas com direito a macarronada na casa da “nonna”
farão sentido.
Muito bom e pertinente o texto! Como sempre!
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