sábado, 25 de agosto de 2012

ONDE MORA O JOÃO-DE-BARRO


Que maravilha é poder viver o sonho da casa própria. O meu, por exemplo, já está quase realizado. Quer dizer... A primeira etapa do sonho já está quase pronta. Quando for entregue a chave (e que demora, meu Deus!), a residência ainda vai ser mais da Caixa Econômica do que minha. Mas, mesmo assim, que deliciosa espera, como é divertido namorar a obra, visitá-la, ver os seus progressos, ficar irritado com a demora, cobrar uma melhoria, enfim, ocupar-se com o que é (ou ainda vai ser) seu.

Agora vejam vocês! A casa, por enquanto, é da CEF. Entretanto, quem está pagando o IPTU sou eu. Tudo bem... Em breve, terei o direito de morar no que ainda não é totalmente meu. Mas, pensando na serventia do IPTU, além da coleta do lixo, alguém sabe me dizer que benefícios mais eu terei? Interessante pagar um imposto que me dá direito de morar no que é meu, não acham!? Ah, mas que papo de doido! Que tolo sou eu por pensar que imposto implica em benefícios. Imposto, o nome já diz, é uma imposição. Sendo assim, impõe quem pode, do verbo “Poder”, obedece quem tem juízo. Se fosse pra dar retorno, chamar-se-ia Investimento, não é mesmo!? Mas existem problemas maiores...

Certa vez, participei de um curso de lideranças cristãs. Lá pelas tantas, me saíram com a seguinte pergunta: “Qual a diferença entre a construção da casa do João-de-Barro e a nossa?” Anos depois, segui reproduzindo o curso, sempre fazendo a mesma pergunta. Porém, somente agora entendo a genial sacada da comparação. O que é necessário pra que o João-de-Barro more no que é seu?

De fato, são muitas as diferenças. A começar pelo fato de que a ave é brutal e machista. Se a fêmea o trai, é trancafiada no ninho, deixada para morrer. O ser humano resolve a questão na justiça. Quer dizer... Salvo casos extremos, onde a parte ofendida picota o traidor e o coloca em malas de viagem. Mas enfim... Normalmente busca-se uma alternativa legal para o problema.

Questões idílicas à parte, as diferenças não param por aí, mas (desculpem o irresistível trocadilho) vamos por partes. Embora alguém tenha me dito, certa vez, que viu um João-de-Barro roubando(?) cimento de uma construção, até onde se sabe, esses passarinhos costumam construir suas casas com barro. Nossa espécie, teoricamente mais evoluída, aprendeu a utilizar, além do cimento e do barro, uma série de materiais como madeira, gesso, piche, tapume, palha, lajota, pedra etc. Além disso, eles têm um só modelo de fabricação, utilizado para uma única finalidade. Nós, ao contrário, fazemos construções quadradas, redondas, triangulares, mistas, empilhadas, isoladas, muradas, improvisadas, bem planejadas etc. Normalmente, não usamos o mesmo espaço para dormir, trabalhar, comer, evacuar, relaxar, rezar, prosear, estudar, malhar, gozar... Na maioria das vezes, ninguém confunde um banheiro com uma cozinha, uma academia com um escritório e assim por diante.

Outra comparação (que eu, particularmente, considero bem romântica) diz respeito ao meio ambiente. O João-de-Barro se molda às condições do solo (matéria-prima), da árvore (ou poste), do clima etc. O ser humano, ao contrário, transforma o meio em que vive. Até aí, vá lá... O problema é ver, nisso (e alguns cursistas, mais beatos, chegavam a forçar essa conclusão), o chamado de Deus para dominar a criação e subjugá-la. Uma cosmovisão muito bonita, não fosse o que o ser humano faz com a natureza em nome de uma interpretação fundamentalista da Bíblia. Certamente, não foi para passar com patrolas por cima de animais, ou destruir ecossistemas, ou alterar profundamente as condições climáticas que o Criador colocou-nos no topo da criação.

Houve quem quisesse enaltecer o espírito naturalmente(?) cooperativo da espécie humana. O João-de-Barro trabalha sozinho e com o próprio bico. Meu pai até que tentou erguer nossa casa sem ajuda, mas precisou da família para carregar tijolo, água e cimento, limpar as ferramentas ao final do dia etc. Todo esse material feito por outras mãos, diga-se de passagem. Além disso, como não dominava a técnica do reboco, teve que contratar um pedreiro para o acabamento. Outras pessoas também fazem assim, ou trabalham em mutirão, ou contratam uma empreiteira ou um pedreiro. O fato é que ninguém constrói sozinho.

Enfim... Dá pra viajar um monte nas diferenças e semelhanças entre o ser humano e os animais. Mas ninguém – nem eu (não com a intensidade de hoje, pelo menos) – parecia sequer desconfiar que estava no meio de uma palestra chamada “Dignidade da Pessoa Humana”. Ora, a grande diferença está aí. Todo João-de-Barro tem onde morar; isso ninguém discute. Já, o ser humano, para viver com dignidade, precisa conquistar: o direito de morar, comer, vestir-se; o direito à saúde, educação, trabalho, lazer etc. Ah, sim... E acesso à internet. Quem não tem e-mail, hoje, simplesmente não existe.

E como conquistar um direito, hoje e em qualquer época da civilização humana? Tendo poder e/ou influência. No maldito sistema atual (a saber: o capitalismo neoliberal), é preciso ter (capital) para ser. O dinheiro determina quem pode e quem influencia. Quem não tem, mora na rua, de aluguel, em ocupações clandestinas, casas abandonadas... Isto é, depende de quem tem (caso do aluguel), ou do governo (planos habitacionais), ou dá seu jeito.

É triste, mas alguns têm de mais, outros de menos (ou nada). Estes últimos têm sua dignidade ferida, uma vez que não possuem direito sequer ao seu próprio pedaço de chão. Isso é muito mais grave e merece muito mais atenção do que o material com que joões-de-barro e pessoas constroem suas habitações. Não seria bom se, como as aves, pudéssemos habitar esta terra simplesmente pelo fato de termos nascido?

No fim das contas, quando Jesus fala sobre os lírios do campo e as aves do céu (Mt 6,25-34), está fazendo a mesma reflexão. Há quem veja nisso um conselho do Mestre para cruzarmos os braços e ficarmos esperando as coisas caírem do céu. Cristo fala, de fato, para não nos preocuparmos, mas com coisas mesquinhas, de forma egoísta. É fato que quem garante para si o sustento, via de regra, pouco se importa com quem passa necessidade. E quem luta pelo seu pedaço de pão, assim que o consegue, dá as costas para os que, até então, eram companheiros de labuta. Mas a proposta é justamente para que sejamos o oposto disso.

O texto fala para, antes de tudo, buscarmos o Reino de Deus e a sua Justiça. Essa é a garantia de que todas e todos viverão com dignidade. O Reino é um eterno mutirão, onde há moradia para todas e todos. Portanto, o desejo de Jesus é que subvertamos a lógica do sistema capitalista. Em vez do acúmulo, a partilha. Em vez do egoísmo, a fraternidade. Em vez da exploração, a cooperação. Em vez da dominação, o serviço.

Se isso não acontece, pelos menos duas devem ser as nossas práticas. Uma é a denúncia de um sistema injusto. Outra é a luta por um mundo melhor. Por isso, mesmo feliz com minha nova aquisição, não posso, não quero me esquecer de quem não tem onde “reclinar a cabeça”, assim como reafirmar a luta para que todas/os tenham vida, e a tenham em abundância.

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