domingo, 28 de junho de 2015

DOS 18 AOS 16: A CHAVE DO NEGÓCIO

Às vésperas de sua votação na Câmara Federal, urge saber se já foi feita a pergunta-chave da questão: a quem serve a redução da maioridade penal? Os defensores querem nos fazer acreditar que estão preocupados com a segurança da população, ou melhor, dos homens (e mulheres?) de bem da nossa sociedade. Mas, diante do histórico de nossa classe política, acreditem: deve haver outra explicação.
Partindo da suspeita de que os políticos sempre defendem seus próprios interesses e os de quem os patrocina, você já parou para se perguntar quem são os doadores de campanha dos apoiadores da redução? Conhece o ramo de atividade de empresas como a Umanizzare Gestão Prisional? Sabe dizer quem lucraria, caso o sistema prisional brasileiro fosse totalmente privatizado, com o aumento da população carcerária?
O Brasil já é uma fábrica de presidiários há algum tempo. Não por acaso, temos a 4ª maior população carcerária do planeta. Se adotarmos a redução, então... Baita negócio (para quem vê isso como um negócio, business), não é mesmo!? Curiosamente, o líder mundial já adota o mínimo de 16 anos em algumas de suas federações, mas estuda aumentar a maioridade penal. Estou falando dos EUA. Os estudos lá apontam que, entre os adolescentes, os tratamentos de reabilitação são mais eficazes do que a punição. Oh, descobriram a América!
As razões para a redução são evidentes. Mas quem liga para razões? Estamos em 33 d.C. A farsa, digo, o tribunal está em sessão. O suspeito é um galileu. Após ouvir as acusações, Pilatos, o juiz, pergunta ao réu: “Sendo tu um zé-ninguém, é verdade que queres ser rei, isto é, um líder independente de Roma?” O sujeito à sua frente, já sabendo qual o veredicto, decide não pactuar com a armação e recusa-se a representar o seu papel, finge esquecer sua fala. Seu silêncio é constrangedor. O tribuno lança uma nova deixa: “O que tens a dizer?” O outro nada responde. A plateia já ameaça umas vaias. Então o roteirista introduz um novo quadro: você decide! Chamam uma nova personagem, um black block. O rapaz foi às ruas manifestar sua indignação, houve um confronto com a guarda romana, alguém disse que ele e seus comparsas estavam bêbados, ninguém soube muito bem como começou a briga, um policial foi mortalmente ferido. E então? Quem vocês querem que eu solte? O baderneiro ali, ou esse outro que quer viver livre do poder romano? A escolha é fácil, pois acusação mesmo só há contra um dos candidatos. Mas quem patrocinou o espetáculo quer ver a execução do outro, o que é contrário ao financiamento das campanhas imperiais. E tudo por quê? Porque o cidadão resolveu denunciar a corrupção e os verdadeiros interesses da bancada sacerdotal. Vai daí que se inicia no meio dos presentes – gente de bem, gente muito séria, mas muito favorável ao status quo – um burburinho. “O fulano é de Nazaré. Diz aí: de lá pode sair coisa boa? Não sei muito bem o que ele fez, mas... e se fosse com o seu filho? Fosse com o meu filho o quê? Sei lá! Mas, e se fosse?” Bastou que um começasse para todos gritarem: “Solte Barrabás!” E o cabeludo? “Crucifique-o!”

Os jovens que hoje estão aí, em vias de serem presos, são também uma denúncia: a constatação de que o Estado falhou. O que resta fazer com quem não tem respeitado o direito à vida? Com quem não tem moradia digna, nem alimentação saudável e balanceada, nem incentivos para o lazer e a prática do esporte, não tem acesso ao espaço público, muito menos educação de qualidade? Melhor encarcerá-los do que mantê-los à vista da gente de bem. Afinal, a consciência só dói quando o problema está à nossa frente. Eles são, enfim, a denúncia de que há pobres em nosso meio. Ora, se eles estão aí é porque há também os que acumulam riqueza. Para estes, não interessa se é razoável a máxima de que o tratamento é melhor do que a punição. Afinal, para que desperdiçar os insumos de um grande negócio à vista?

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Por um Natal além de Ritos e Ofícios

Adoração dos Pastores - Pintura de Bartolomé Esteban Murillo
E o povo foi à missa. Uns poucos, é verdade. Tímidos, mas muito devotos. Largaram momentaneamente família, amigos, vizinhos, afazeres, telefonemas, o churrasco... e lá se foram. Noite de Natal, sabe como é! Tem presépio, uma equipe animada de cantos, luzes, flores, o sermão do padre... tudo conforme manda o figurino, ou melhor, a tradição!
O Evangelho falava do recenseamento que levou Maria e José a Belém e do glorioso anúncio aos pastores (Lc 2,1-14). Após a leitura, muito respeitosa, feita pelo diácono, levantou-se o padre e solenemente tomou posse do que por direito era seu, isto é, o microfone. Vá lá que o texto fosse pra lá de manjado, ultraconhecido, mas, a julgar pelo silêncio da plateia, digo, dos fiéis, parecia que algo maravilhoso estava prestes a ser anunciado. Embevecido pela atenção geral, o presidente começou sua pregação.
De cara, a primeira alfinetada: “Quantas pessoas hoje estão comendo, bebendo, fazendo festa e não tiveram tempo de vir a esta celebração; elas se esqueceram de Jesus!” Pensei que o público acusaria o golpe, não por si, mas pelos familiares que preferiram ficar em casa... nada! Então a artilharia continuou: “Quantos pobres hoje não têm o que comer (ôpa! – pensei: tá esquentando...), mas são felizes com o que possuem (ihhh...)!” Resumo da ópera: um festival de senso comum. Natal não é tempo de ficar trocando presentes, mas de ir à Igreja e dar glória a Deus. Se os pobres são capazes de ser felizes com o que possuem, quanto mais nós que temos a honra de comungar Jesus todo domingo. Só pode se dizer cristão quem segue os preceitos da Santa Igreja. Pensar qualquer coisa além disso cheira a heresia...
Curioso que o herege é, por definição, quem vai contra os dogmas da Igreja e os ensinamentos bíblicos. Pois bem, então vamos ao texto! Jesus foi concebido, criado e se tornou o Messias na Galileia. Belém foi palco apenas de seu nascimento. Assim, Lucas apresentava Jesus como o Filho de Davi, o menino de que falava a 1ª leitura (Is 9,1-6). Segundo Isaías, uma grande luz brilhou porque o Príncipe da Paz veio para quebrar o jugo que oprimia o povo e restabelecer a Justiça. A Luz, portanto, era a liberdade para os que viviam nas trevas, isto é, os oprimidos. O Salmo 95 e a carta a Tito – Tt 2,11-14, também textos do dia, falavam do restabelecimento da Justiça como sinal de salvação. Agora, não sei se vocês tiveram a mesma impressão, mas algo me diz que Justiça parece ser uma palavra-chave para entendermos o texto de Lucas, não!?
Os textos também são unânimes em dizer que Jesus veio para todas e para todos. Entretanto – e aí o padre tem razão –, nem todos o acolheram. O v.7 diz que Jesus foi colocado numa manjedoura porque não havia lugar para ele (e sua família) em hospedarias. Seria José o único descendente vivo de Davi? Ele não tinha irmãos, primos, parentes que o pudessem acolher? O Evangelho de João disse que Jesus veio para os seus, mas estes não o receberam (Jo 1,11). Talvez por isso, tempos depois, Ele tenha dito: “Os sãos não precisam de médico” (Mc 2,17a). Uma ironia, certamente, já que os judeus (especialmente fariseus e doutores da Lei) se consideravam os únicos dignos de pertencer ao povo escolhido. Na cidade imperava a lógica do Templo, atrelado aos ritos de purificação. Riqueza era sinal de bênção divina. Assim, os pobres eram considerados impuros por sua própria condição. E como os puros deveriam viver separados dos impuros, estes eram impelidos para fora das cidades. Ora, Jesus nasce em Belém, mas fora da cidade. E quem é convidado a ir vê-lo? Algum citadino?
O anjo apareceu aos pastores, cuja experiência com o sagrado era de opressão. Viviam no campo, expostos a inúmeras situações que os tornavam impuros. Não admira que tivessem medo. Sempre que iam ao Templo, era para negociar o rebanho ou purificar-se. O anjo, porém, disse-lhes que se alegrassem. O momento era de glorificar a Deus. Um novo tempo, uma nova relação deveria se estabelecer entre Deus e a humanidade, especialmente os pequeninos, até então considerados amaldiçoados. Notem que o Templo fica de fora dessa. Logo, essa história de que os salvos são aqueles que vão à missa todo domingo não se sustenta pela Bíblia. O que determina a pertença ao povo de Deus é a vida em comunidade, não a frequência às celebrações. Embora não tenha sido a primeira a ser convidada, a comunidade dos pastores é a primeira a aceitar o convite e fazer a experiência do Deus Menino.
Olhem que bela oportunidade! Hoje, as igrejas históricas estão se esvaziando. O povo não aceita mais ameaças, nem que sejam referentes ao fogo eterno. Duas fórmulas o atraem: 1) A mágica das curas e exorcismos; 2) Algo que toque seu coração e dialogue com sua realidade. A primeira arrasta multidões, mas seus efeitos logo passam. A segunda atrai menos, mas os efeitos são mais duradouros porque transformam, de fato, a vida das pessoas. Em vez de “aproveitar” a casa cheia para reclamar de quem só aparece em ocasiões especiais, por que não dizer que a porta está sempre aberta? Por que não ir ao encontro dos mais necessitados, celebrar com eles, na casa ou nas acomodações deles? Se o objetivo é puxar a orelha, por que não questionar o motivo de, dois mil e quatorze anos depois de serem acolhidos por Jesus, os pobres ainda serem marginalizados e explorados? De qualquer forma, por que não anunciar que é um tempo de alegria? Porque é isso que o Natal significa. Deus veio habitar entre nós e, logo de cara, fez questão de mostrar que sua casa tem lugar para todas e para todos, mesmo os que não seguem os preceitos religiosos tão à risca. Em suma: Natal é tempo de anunciar que Deus veio ser um de nós para que toda a humanidade se una a Ele.

Confesso que voltei pra casa irritado. O padre ficava reclamando da quantidade de participantes na celebração, sem perceber que seu discurso metia mais medo que amor e esperança no coração daquela gente. Se tivesse copiado o exemplo do anjo, pelo menos: este percebeu que deveria tranquilizar seus ouvintes antes de dar-lhes a Boa Nova. Ou se tivesse observado como Deus se fez pequeno para acolher os mais pobres... Mas enfim, quando estava quase chegando ao meu destino, antes de abrir o portão, pensei: “Ô Zé, deixa de ser besta! Você parece até que tá querendo ensinar a missa ao vigário!”