A JUVENTUDE QUER
VIVER
“Vamos
juntas/os gritar, girar o mundo:
(Pe. Gisley de
Azevedo Gomes)
1. Contra o extermínio de jovens
É
com prazer que aceitamos o convite para novamente escrever sobre Bíblia e
juventudes. No artigo anterior[2],
falamos sobre juventudes e mundo urbano. Nosso propósito, naquele texto, era
falar sobre as várias tribos juvenis presentes nas cidades e como essa
diversidade poderia resultar em hermenêuticas que, não mais produzidas para,
mas pelos
jovens, pudessem alimentar sua resistência às limitações impostas pelo
adultocentrismo[3]. O
que agora apresentamos segue a mesma linha, aprofundando o tema, uma vez que
falaremos sobre a violência, mal que aflige principalmente o público juvenil,
mas que felizmente encontra movimentos de resistências organizados pelas
próprias juventudes para combatê-lo.
Antes
de prosseguirmos, porém, uma ressalva. Por força do tempo e espaço destinado a
este artigo, e também por nossas próprias limitações, não escreveremos sobre
juventudes em geral, mas a partir de alguns grupos juvenis urbanos, aos quais
conseguimos alcançar por nossa condição geográfica, experiência pessoal,
profissional ou, ainda, por nossa ação pastoral. Temos certeza de que as
realidades relatadas aqui poderão coincidir com as de outros grupos, bem como
ser complementadas ou refutadas por experiências que quem nos lê possa ter, por
ventura, acumulado.
Dito
isto, passemos ao nosso tema. Comecemos por uma cena da vida real. Em junho de
2009, a juventude católico-romana perdeu Pe. Gisley, assessor do Setor
Juventude da CNBB, vítima de latrocínio. Os autores: quatro jovens, um deles
com menos de 18 anos. Uma cena de violência juvenil, como tantas outras, mas
esta nos chama a atenção pela ironia: Gisley era defensor da luta contra a
redução da maioridade penal e um dos principais motivadores da campanha “Juventude em Marcha contra a Violência e o
Extermínio de Jovens”. Sua morte alavancou não só esta campanha como
reanimou outras discussões e iniciativas, inclusive nos meios ecumênicos, sobre
como cultivar uma cultura de superação da violência.
Falaremos
da campanha contra o extermínio de jovens por ser uma proposta que vem
mobilizando a sociedade e porque, embora concebida por jovens da ICAR, ganhou o
apoio de organizações juvenis ecumênicas. Ela nasceu na 15ª Assembleia Nacional
das PJs (Pastorais da Juventude) da ICAR no Brasil, realizada em Samambaia/DF,
em maio de 2008 e, entre outras contribuições, chamou a atenção para o fato de
que tantas mortes juvenis não acontecem por acaso, mas são produto de uma ação
sistematizada de extermínio de jovens. Graças (infelizmente) à morte de Gisley,
(e felizmente) ao apoio de organizações como a REJU (Rede Ecumênica da
Juventude), ligada ao FE Brasil (Fórum Ecumênico Brasil), e ao alcance das
próprias PJs, a campanha tem conquistado grande repercussão no território
nacional[4].
O
momento parece ser ideal para esta discussão. Afinal, vivemos, tanto na esfera
nacional quanto mundial, uma época de bônus
demográfico, isto é, ocasião onde o número de pessoas em idade produtiva
supera o de crianças e o de idosos. Houvesse uma política de inclusão e
aproveitamento de toda essa massa produtiva, isto seria ótimo para o Brasil e
para o mundo. Porém, não há oportunidades para todas/os, nem ao menos para a
maioria. Somente uma parcela da população brasileira e mundial pode se
considerar privilegiada por ter moradia, saúde, educação, trabalho e outras
condições que assegurem vida plena. O restante da população é considerado
material excedente e, portanto, descartável. Se não puder ser eliminado
diretamente, que seja entregue à própria sorte, destruindo-se mutuamente na
luta por sobrevivência. A violência, quando não causada pelos “privilegiados”,
é por eles usada como forma de “purificar” o planeta da “escória humana”.
Com os meios sociais de comunicação
nas mãos, a elite dominante consegue, ainda, a proeza de fazer a população
acreditar que o extermínio é a melhor solução. Nas conversas informais, sempre
surge alguém defendendo a pena de morte, prisão perpétua e até a implantação da
lei de Talião (olho por olho). Como as/os jovens competem com as/os adultos
pelas oportunidades de renda, e um dos eixos da nossa sociedade é o
adultocentrismo, quem é visto como o vilão da história? Mas será que a culpa da
violência e da criminalidade é das/os jovens? Serão eles os principais agentes
do crime, organizado ou não? Que interesses movem o processo de criminalização
da juventude? E podemos, ainda, acrescentar: Condena-se toda a juventude, ou
apenas determinados grupos juvenis? A seguir, tentaremos responder a estas
questões e propor um modelo de superação da violência juvenil.
2. Dois lados da mesma moeda
Quando se fala em violência, logo nos
vem à mente algum tipo de agressão física. O motivo é simples: Esta é a sua
face mais evidente e aparente. Mas, antes de falar sobre isso, vejamos o
seguinte texto:
Careca[5]
Careca, na
verdade Marcelo Cândido de Jesus, tinha 14 anos e escolheu a rua porque estava
passando fome em casa. O pai, jardineiro, havia sofrido um derrame há quatro
meses e estava sem poder trabalhar. A mãe, Terezinha de Oliveira, também estava
desempregada. Tinha mais dois irmãos menores. A família vinha se sustentando
com doações de vizinhos. Careca nunca frequentou a escola. Estava na rua há
apenas três meses. Morreu assassinado em 23 de julho de 1993.
Fonte:
CEAP - Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, Revista PIXOTE
sobre meninos e meninas: O MASSACRE DE CANDELÁRIA,
ano1, nº 2, 1993.
Aprendemos pouco
desde então ....
Em 1993 foram assassinadas 30.586 pessoas no Brasil, na maioria
jovens,
entre os quais CARECA.
Em 2007, foram assassinadas 47.707 pessoas no Brasil, na maioria
jovens,
como CARECA.
O caso, conhecido como chacina da Candelária, é emblemático,
pois, além de ganhar repercussão mundial, pôs a descoberto uma operação de
extermínio de jovens. Embora nada tenha sido comprovado, o mais provável é que
policiais, pagos por comerciantes da região, tenham feito uma “limpeza” no
centro histórico do Rio de Janeiro. Mesmo que esta suspeita nunca se confirme,
só o fato de a hipótese, em vez de parecer absurda, ser vista pela população
como plausível, já é uma vitória. Ainda assim, é triste constatar o crescimento
de homicídios entre jovens, acima da média geral.
Em
outro caso de homicídio que ganhou repercussão nacional, foi a vez de jovens
queimarem vivo o cacique pataxó Galdino Jesus dos Santos. No primeiro caso, os
jovens assassinados eram moradores de rua. Neste, jovens de classe média-alta foram
os algozes do líder indígena. Não querendo retirar a culpa destes, nem
minimizar as implicações da morte de Galdino, ousamos afirmar que, em ambos os
casos, os jovens foram vítimas. No primeiro, a violência explícita, resultando
em morte. No segundo, jovens desprovidos de valores. Quando perguntados sobre
suas motivações, disseram que imaginavam se tratar de um mendigo. Quem ensinou
a eles que a vida de um morador de rua vale menos que a de um líder político?
Estes
dois casos parecem pontos extremos da violência, mas são apenas a ponta do “iceberg”. A seguir, veremos outras
formas de agressão e como elas terminam em atos extremos, como os dois que
acabamos de relatar.
3. Tipos de violência juvenil
A primeira
violência contra a/o jovem – da qual nascem todas as outras – é a invisibilidade.
Um exemplo claro é a definição mais comum de juventude[6]:
Período da vida entre a infância e a
idade adulta. Ora, se o jovem não é criança nem adulto, o que ele é? Não é
comum ouvirmos esta pergunta. Tampouco os jovens estão habituados a fazê-la.
Sua atenção está voltada (porque assim foi treinada) para o futuro: “O que você vai ser quando crescer?” Sua
voz não é ouvida no presente. Se ele ousa se manifestar, logo é desqualificado
como inexperiente, imaturo, irresponsável. É como se a juventude fosse só um
estágio para a vida adulta.
Na
esfera institucional, a invisibilidade pode pesar sobre as/os jovens
de forma silenciosa, ou bem agressiva. Depende de como elas/es reagem. Andando
na contramão dos programas de rádio e televisão, shoppings, internet, moda e da
própria arquitetura das cidades, que estão cada vez mais joviais, os espaços
privilegiados do poder – as instituições políticas, militares, civis e religiosas
– não oferecem nenhum atrativo. Quem se interessa por assistir às sessões do
Congresso nacional, por exemplo? Nas forças armadas, o jovem, sendo aspirante
ou soldado, está na escala mais inferior da hierarquia, devendo obediência a
seus “superiores”. Na escola, os jovens são alunos, ou seja, “sem luz”, cabendo à professora ou
professor o papel de “libertá-los das trevas”. As vítimas da ditadura da moda
(pessoas que sofrem de obesidade, bulimia, anorexia, dopping, anabolizantes etc.) não aparecem nas estatísticas como
jovens, mas como atletas, modelos, fisiculturistas, sedentários... Também no
ambiente eclesiástico, há situações em que a/o jovem se sente deslocada/o até
em reuniões de conselho paroquial, onde teoricamente todo mundo se conhece. São
ambientes sem vida, sem graça, silenciosamente (e imponentemente) hostis,
justamente porque não há interesse em que “um/a qualquer” (e as juventudes
estão inclusas neste grupo) participe das decisões. Aceitando esta imposição,
não há problemas, pois se está dentro da ordem (isto é, sob controle). Mas
aquelas/es que não aceitam tornam-se indesejáveis, “baderneiros” e, com isso,
correm o risco de conhecer o “poder de argumentação” da polícia militar.
Falando
em força policial, a condição social ajuda a definir qual a punição mais severa
a se aplicar aos “desordeiros”. Jovens economicamente privilegiadas/os (em sua
maioria, brancos e alfabetizados), quando considerados culpados, fazem terapia
para pensar em seus erros. Já, os pobres (maioria de negros e analfabetos) passam
alguns dias, meses ou anos numa cela. Percebe-se, então, que há uma diferença
de tratamento, conforme a condição financeira[7].
Mesmo
esta divisão (entre ricos e pobres) é um desrespeito à diversidade juvenil,
revelando ainda um certo grau de invisibilidade. Na mesma condição social, há
grupos de pichadores e grafiteiros, por exemplo. Ambos mudam a paisagem das
cidades onde vivem. Mas uns fazem isso dentro da lei, enquanto os outros optam
por desobedecê-la (não por maldade, mas como forma de protesto por não se
sentirem incluídos). E mesmo dentro de um único segmento juvenil, há grupos de
torcedores organizados, por exemplo, que se preocupam em acompanhar seu time do
coração, enquanto outros se reúnem apenas para brigar ou depredar.
Classificá-los conforme sua tribo, ou condição financeira, é criar
estereótipos, reforçar os preconceitos que só mantêm a discriminação contra
as/os jovens.
Bem
é verdade que nem todos os jovens são malvistos, mas isso não quer dizer que
não sofram com o princípio da invisibilidade. Há aqueles que são respeitados
pela sociedade, admirados, estão nas capas de revista, estrelam filmes, novelas
e comerciais. Há também os que não atingem a fama, mas são elogiados nas
instituições onde estão presentes. Será que o simples fato de estudarem, serem
independentes (por méritos próprios, ou condição financeira dos pais),
bonitas/os, entre outros, é que lhes confere tanto prestígio? Ou sua capacidade
de obediência é que merece “reconhecimento”? Conforme procuramos demonstrar no
artigo anterior[8],
estes jovens servem como garotas e garotos-propaganda do sistema, transmitindo
sempre os valores impostos pelo adultocentrismo. Claro, elas/es não procuram
questionar sua condição porque, se nada mudar no cenário atual, quando forem
adultos, terão também seus benefícios. Mas serão elas/es, de fato, livres para
expressar o que pensam?
Interessante
notar que as/os jovens podem deixar de ser invisíveis, conforme o interesse de
quem detém o poder e a informação. Por exemplo, quando a violência é causada pelos
considerados marginais, ganha repercussão na imprensa, mas quando são eles as
vítimas, os noticiários “mascaram” um pouco a realidade. É o caso da recente
onda de agressões a homossexuais. Enquanto os agredidos são identificados por
sua orientação sexual, os agressores são chamados simplesmente de jovens. A
maior parte das mulheres vítimas de agressão, estupro, mães solteiras, ou que
tenham sido forçadas a fazer aborto, são jovens, mas os números informam apenas
a violência contra a mulher. A maior parte dos presidiários é jovem e negra,
muitos condenados injustamente, mas quem está na cadeia só aparece no jornal
como “detento” ou “bandido”. Porém, estando em liberdade, com uma arma na mão,
praticando algum delito, traficando, ou matando, a manchete é bem específica: “Jovem
sequestra ônibus, mata inocentes, é preso com tantos quilos de maconha...” Por
isso, é normal que a população fique espantada com a denúncia de que nossas/os
jovens estão sendo exterminados. Como esses “marginais” podem se fazer de vítimas,
se a TV mostra que eles é que estão ceifando vidas inocentes?
Com
isso, vamos percebendo que, à medida em que conquista alguma visibilidade, a/o
jovem sofre, infelizmente, outro tipo de violência: a criminalização. Medidas
como a redução da maioridade penal e o toque de recolher são consideradas um
cuidado com a integridade dos próprios jovens. Alguns dados e estatísticas
(solicitadas por quem? A serviço de quem?) “revelam”, inclusive, que diminuiu
sensivelmente o vandalismo e o banditismo em cidades brasileiras que adotaram
estas medidas[9].
Basta um pouco de criticidade para perceber que os jovens com menos de 18 anos
não estão sendo protegidos, mas responsabilizados pela criminalidade no país.
Aliás,
é triste constatar que uma considerável parcela da sociedade apoia essas
atitudes, provavelmente enganada pela manipulação dos números, matéria em que a
mídia é especialista. Obviamente, isto se deve ao medo da violência. O povo
sente que algo precisa ser feito. O apelo é para que se imponha limites a essa
juventude que está aí. Bom, estamos tentando, no decorrer destas linhas,
primeiro questionar se a culpa é mesmo das/os jovens. Mas aqui cabe mais uma
questão: Como pode uma cultura ser propositiva e libertadora quando se baseia
em proibições e castrações? Que tal se, em vez de impor limites, fossem
cultivados valores? Os jovens que mataram Galdino teriam feito o que fizeram se
considerassem importante a vida de um mendigo?
Estes
são apenas alguns dos tipos de violência juvenil. Certamente, quem nos lê pode
acrescentar inúmeros outros à lista. Estas informações são úteis para percebermos
que a agressão física não é a única forma, embora seja a mais visível – e
talvez a mais extremada – das ações violentas. Passemos agora a ver outras
causas e, também, a extensão atual do problema.
4.
Outros dados
relevantes
Pelo
que estamos dizendo, parece até que, exceto a campanha das PJs, nada se está
fazendo pelas juventudes. Restabeleçamos, portanto, a verdade de que os últimos
governos, na esfera nacional, não têm sido totalmente negligentes. O ingresso
na faculdade e a oportunidade do primeiro emprego, entre outras conquistas,
tornaram-se mais acessíveis na última década. Além disso, a criação de uma
secretaria e a aprovação (não sem uma forte pressão de grupos juvenis organizados)
da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que inclui o termo “juventude” no
capítulo VII do título VIII da Carta Constitucional demonstram uma preocupação
com as/os jovens jamais vista nos governos anteriores. O problema é que, na
prática, muitas dessas conquistas ainda são programas. Além disso, a
preocupação maior ainda é aproveitá-los no mercado, ou seja, não há uma
preocupação sincera com o bem-estar das juventudes. Ainda assim, não há como
negar que os direitos adquiridos podem melhorar a vida das pessoas jovens.
Porém, se não se tornarem políticas públicas (necessárias, ainda que feitas por
adultos, para jovens), correm o risco de ser cancelados a qualquer momento,
como aconteceu com o sistema de cotas para negros, ou reformulados para atender
aos interesses de outros grupos (interessados em mão de obra qualificada, por
exemplo).
Outro
ponto a ser esclarecido é que não se quer negar, aqui, que a/o jovem seja
culpado pelos seus atos. Aliás, muitos grupos juvenis têm-se mostrado
extremamente cruéis. É o caso, por exemplo, dos praticantes de bullying[10]
(nas escolas) e cyberbullying (mesma
prática, só que empregada nas redes virtuais de relacionamento). Porém, em uma
pesquisa com jovens das zonas sul e oeste da cidade de São Paulo, constatou-se
que muitas/os jovens são violentas/os porque têm dificuldades de se relacionar,
ou não convivem com o pai. Considerando o que vimos até aqui, isto é, a falta
de acolhida e de oportunidades proporcionadas pelas instituições, parece óbvio
que esses jovens procurem referências em outros setores. Vamos conferir o que
disse um dos entrevistados, da zona sul (teoricamente a área mais pobre e
violenta) de São Paulo:
“O jovem que comete [um] crime [como o
assalto e o tráfico], geralmente, só tem a mãe dentro de casa, com mais três,
cinco ou até mais irmãos, na maioria das vezes, pequenos. Não vou distinguir
cor, porque tanto branco quanto negro, roubam, matam, sofrem esse tipo de
violência de não ter o que comer, de não ter esses aparelhos, como você diz, de
cultura... não tem onde se divertir. É um jovem sem qualificação profissional,
sem perspectiva de vida, porque não chega nem à 5ª série direito. A mente dele
é pequena e o que mais almeja na vida é uma moto, um carro. Conseguiu aquilo,
pra ele ‘tá satisfeito. Então acho que é um jovem e tenta se espelhar naquele
cara que ‘tá mais forte, que é o comandante do bairro, e muitos acabam caindo
nessa armadilha de que o mundo é só um carro e uma moto. É um jovem que não
pensa em ter uma profissão, fazer uma faculdade, se desenvolver
profissionalmente e conseguir outras coisas para os jovens que estão lá
(M.B.A., 18-24, M-ZS)[11].”
No
mundo organizado pelos homens[12],
a ausência da figura paterna é um grande problema para a família. O jovem,
ansioso por aceitação e inserção social, sente a necessidade de – na verdade, é
pressionado a – espelhar-se em uma figura masculina. É neste contexto que aparece,
como alternativa, o “comandante” da comunidade. Ele representa o modelo que o
jovem não encontra em casa, ou então a oportunidade de inclusão que a sociedade
silenciosamente lhe nega. A mãe, muitas vezes impossibilitada de reagir, sofre
duas vezes: pela situação de seu rebento e por ser acusada pela lógica
patriarcal de “fracassar” na criação dos filhos.
É
muito conhecido o slogan: “Adote seu filho antes que o traficante o
adote”. Nós discordamos, em parte, por entender que o problema não diz
respeito somente ao núcleo familiar. É toda uma sociedade que não o acolhe. Haja
vista os problemas apontados pelo jovem entrevistado como origem da violência:
fome, desemprego, falta de lazer e de cultura. O tráfico torna-se, então, uma
maneira de ser reconhecido, de deixar de ser invisível. O desejo de ter um
carro ou moto, aliás, aponta para isso, pois revela a necessidade de ter para
aparecer, o que – diga-se de passagem – é de fato uma exigência da lógica
capitalista.
Tanta
violência causa cada vez mais medo na sociedade. Em consequência, aumenta a
pressão por medidas de segurança. As soluções, porém, trazem ainda mais
insegurança, pois os militares cada vez mais recebem treinamento (e poderio
bélico) para uma guerra. Justificam-se dizendo que os criminosos,
principalmente traficantes de drogas, possuem tecnologia superior, estando
sempre um passo à frente. Mas usam sua técnica – e truculência – também em
manifestações pacíficas, como as dos estudantes, ou dos professores (onde a
maioria é composta por jovens). Mesmo em relação aos traficantes, um
ex-secretário da segurança nacional, em entrevista a um programa de TV[13],
falando sobre o recente episódio do Morro do Alemão, afirmou que muito mais
perigosos do que os garotos (sic) da
favela são os milicianos, por serem policiais treinados. Aliás, ele afirmou
também que o tráfico se firmou, nos morros cariocas, patrocinado pela chamada banda podre da polícia militar. Essas
notícias geram, na população, muito mais medo do que respeito. Estar sozinho
numa rua deserta, à noite, por exemplo, é motivo para ter tanto medo dos
bandidos quanto dos policiais. Pensando nisso, e em medidas de (in)segurança
como o toque de recolher, não dá pra evitar a comparação: parece que estamos
voltando aos tempos da ditadura militar.
Outro
fator preocupante é o expressivo aumento de mortes juvenis na última década. Segundo
o Mapa da Violência 2010[14],
a taxa de homicídios cresceu mais entre jovens de 14 a 25 anos do que nas
demais faixas etárias. As capitais e regiões metropolitanas, consideradas as
mais violentas, mantiveram ou reduziram levemente suas taxas[15].
Mas isso não quer dizer que o índice não tenha crescido. Porto Alegre/RS, por
exemplo, que se manteve como a oitava capital no ranking brasileiro, teve seus números mudados de 76,7 (a cada
100.000 jovens assassinados) em 1997 para 114,4 em 2007. Se considerarmos que a
população juvenil aumentou significativamente nesses 10 anos, os números são
ainda mais impressionantes.
Embora
pensemos primeiro nos grandes centros, devido ao seu histórico de violências, é
nas pequenas e médias cidades do país que os índices têm crescido
assustadoramente. Isto é péssimo. Idealizamos o interior como lugar de paz e
sossego, e demonizamos as capitais. Nossas músicas regionais sempre exaltaram o
campo, o sertão e o interior como paraísos terrestres. Porém, infelizmente, a
violência e a criminalidade estão se disseminando por todo o território nacional.
Sempre morreram jovens do sexo masculino e feminino, religiosos e ateus,
brancos e negros, ricos e pobres, mas agora, contrariando as tradições
populares, são motivo de preocupação tanto os assassinatos dos da cidade grande
quanto os do interior. Por tudo isso, acreditamos não haver nenhum exagero na
expressão “extermínio de jovens”.
Diante
desse quadro, o que fazer? Fala-se muito na não-violência como alternativa. Mas
deixar de ser violento não é o suficiente para acabar com este mal. É
necessário cultivar uma cultura de superação da violência, ou seja, uma cultura
de Paz. Mas como isto é possível? E mais... Será que podemos encontrar
luzes na Bíblia para solucionar o problema? É o que tentaremos propor, a
seguir.
5.
Em busca da Paz
Conforme
narrado em Ex 1,7, o nascimento de
Moisés tem como pano de fundo o que hoje chamamos de bônus demográfico. A fertilidade era uma bênção de Deus, destinada
à descendência de Abraão (Gn 12,2).
Esta bênção, porém, era vista como uma praga pelos egípcios (Ex 1,9-10). Isso porque a quantidade de
filhos do sexo masculino poderia se traduzir, num futuro próximo, em um
exército poderoso. A situação chegou ao ponto de o Faraó mandar matar os
meninos hebreus de 0 a 2 anos de idade (Ex
1,22).
Exceto
a Bíblia, não há nenhum documento registrando este acontecimento trágico e
despótico. Entretanto, mesmo que seja apenas uma alegoria, a narrativa mostra
como os reis de ontem e de hoje temem o povo e eliminam os focos de
resistência. Os governantes atuais, porém, não são adeptos de medidas
impopulares. Em vez de eliminar diretamente o material humano excedente,
alimentam a lógica competitiva do mercado, onde a próxima, ou próximo, torna-se
um adversário a ser batido. Com isso, adultos disputam cada oportunidade entre
si e com os jovens. Também as tribos juvenis entram em conflito na luta pela
sobrevivência. Quanto mais os recursos se tornam escassos, mais a selvageria
impera.
Logo,
se queremos cultivar uma cultura de Paz, precisamos estar atentos, primeiro, às
lições do grupo liderado por Moisés, que enfrentou o Faraó, em busca da
libertação. Em primeiro lugar, precisamos resistir. Essa resistência tem que
ser corajosa e inteligente, como a das parteiras (Ex 1,15-19). Além disso, é preciso formar grupos, formar
comunidades. Moisés luta sozinho e causa a morte de um egípcio, a ira do rei e
a desconfiança dos hebreus (Ex 2,11-15).
Quando decide enfrentar novamente a opressão, é chamado a formar comunidade (Ex 3,11-4,16), e finalmente a libertação
acontece.
Por fim, é preciso estar atenta/o ao
chamado e aos sinais dos tempos. Estudos indicam que o monte Horeb (Ex 3,1) apresentava atividades
vulcânicas. Logo, era comum a combustão espontânea de arbustos. Então, o que
fez Moisés se admirar com a sarça ardente? Como é que, cumprindo sua rotina de
trabalho, ele percebeu que alguma coisa estava diferente? Na correria do nosso
dia-a-dia, como percebemos a presença de Deus em nosso meio? Bom, o chamado de
Moisés foi a resposta de Javé ao clamor dos hebreus (Ex 3,9-10). Perceber a vontade de Deus, então, passa pela
indignação com o sofrimento do povo. Assim, produzir uma hermenêutica juvenil é
estar atenta/o (imerso, de preferência) às realidades das juventudes. Podemos
abafar as sarças que ardem em nosso peito, ou tirar as sandálias (e, com elas,
as desculpas) e colocarmo-nos a caminho.
6.
A Paz de Cristo
Depois
de tudo o que já dissemos, parece óbvio que Deus esteja nos pedindo para acabar
com o extermínio de jovens. Mas como superar um problema já enraizado, inculturado,
institucionalizado em nosso meio? A violência já atingiu até os órgãos
responsáveis pela segurança nacional, que deveriam ser os primeiros a
combatê-la. A militarização do policiamento não lembra somente o tempo (não
muito distante) da ditadura, mas também a época da Pax Romana, período em que Jesus nasceu, viveu e foi assassinado. Ela
se estendeu até tempos depois, perpassando as comunidades joaninas que devem
ter escrito o quarto evangelho, por volta dos anos 90 d.C. Nele, está escrito: “Eu vos deixo a Paz, eu vos
dou a minha paz. A paz que eu vos dou não é a paz que o mundo dá. Não fiqueis
perturbados, nem tenhais medo” (Jo
14,27). Acreditamos que uma reflexão sobre este texto pode dar-nos pistas
de como resistir à cultura de violência vigente em nossos dias.
O trecho
que relembramos, diferentemente de como é refletido em nossas liturgias,
trata-se de um contraponto entre a paz do mundo (Pax Romana) e a Paz de Jesus. Na primeira, tudo corria bem para
quem obedecia o imperador e mantinha os impostos em dia. A Paz que Jesus
oferecia, porém, era gratuita e geradora de vida. Por isso, não havia razão
para ter medo. Falando assim, Jesus encorajava seus ouvintes a resistir e, ao
mesmo tempo, denunciava o verdadeiro inimigo, a fonte originária da violência,
isto é: o poder opressor.
Aos “desordeiros”,
Roma impunha a paz pela espada, sob a justificativa de que nada deveria
perturbar a ordem. Ser desordeiro era não pagar impostos, ou não acatar as
ordens reais. Para os camponeses empobrecidos, era difícil manter os impostos
em dia. Frequentemente, algum grupo se insurgia, sendo logo esmagado pela
guarda militar. Quando as revoltas eram maiores, legiões inteiras marchavam
contra as cidades. Foi assim que, em 70 d.C., Jerusalém e o Templo foram
completamente destruídos. Também hoje, quando há manifestações, normalmente
tendo os jovens na linha de frente, o policiamento militar apresenta seus
“argumentos”. Ora, isso não é paz. Como diz – e muito bem – a música Minha Alma, da banda de pop rock
nacional O Rappa: “Paz sem voz não é paz; é medo”.
As
autoras e autores do evangelho de João entenderam que a vinda de Jesus
implicava na restauração do Plano de Deus, resumido numa frase: “Eu vim para que (todas/os) tenham vida, e vida
em abundância” (Jo 10,10). Podemos
considerar este o Evangelho da promoção da Vida[16].
Sua mensagem valoriza, ainda (e como consequência), a igualdade de gênero (Jo 11,27)[17],
a acolhida ao pobre e ao estrangeiro (Jo
4,1-42) e o respeito à diversidade (Jo
3,1-13). Enquanto a paz de Roma baseava-se em códigos hierárquicos, a de
Jesus é fundada na igualdade. Enquanto o imperador exigia obediência, Cristo
resgatou a gratuidade nas relações. Em vez da imposição de limites pela força,
para manutenção da ordem, as comunidades cristãs aprenderam de seu Mestre a
cultivar valores, e a deixar que eles fossem o critério de sua conduta. Ou
seja, a vida nova requer práticas novas.
Interessante
notar que Jesus denunciou as autoridades de seu tempo, mas foi das discípulas e
discípulos que Ele exigiu a conversão dos corações. Restabelecendo o amor como
valor primeiro, ordenou aos seus seguidores que se amassem uns aos outros, pois
nisso seriam reconhecidos como cristãos (Jo
13,343-35). Esta, a diferença fundamental. O que vemos, hoje, são pessoas
clamando pela honestidade dos líderes políticos, mas trapaceando no trânsito,
na fila de supermercado, na restituição de bens perdidos. Jovens reclamam da
falta de oportunidades, mas agridem covardemente outros jovens, sem dar-lhes
nem chance de defesa. Dizíamos há pouco que é necessário formar comunidades, e
que elas estejam unidas em prol do fim da violência, mas isso de nada adianta
sem o amor à próxima, ao próximo. Uma vez vencido o inimigo comum, os conflitos
internos afloram e o problema apenas muda de endereço. Em suma, reproduzir o
sistema de opressão não é o caminho para vencê-lo, mas para mantê-lo vivo.
Podemos
deduzir, portanto, que a Paz começa por nós mesmas/os, pela maneira como
tratamos uns aos outros. Mas é claro que não podemos abdicar do dever de
denunciar, cobrar as autoridades, desde que não o façamos usando a mesma arma
da opressão, isto é, a violência. Há quem defenda que Jesus, em outros
evangelhos, ensine o revide. Em Mateus, por exemplo, Ele diz que não vem trazer
a paz, mas a espada (Mt 10,34). E em
Lucas, Ele vem trazer fogo e divisão (Lc
12,49-53). Mas, pelo que já falamos sobre a Pax Romana, cremos que as leitoras e leitores já perceberam de que
paz Mateus está falando. Já, o fogo e a divisão de Lucas indicam que não temos
como ficar indiferentes ao chamado de Deus. Que nossa voz se faça ouvir, não
pela imposição, mas pela força do amor que cultivamos em nossos grupos.
7.
Olhai por nós
Em Is 32,17, lemos que a “Paz
é fruto da Justiça”. O próprio Isaías nos diz que praticar a Justiça
é fazer o bem e socorrer o estrangeiro, o órfão e a viúva (Is 1,17), isto é, restabelecer a dignidade aos excluídos, ou – como
abordamos neste artigo – aos invisíveis. E o que um/a invisível quer mais do
que a visibilidade, isto é, ter vez e voz?
A
campanha contra a violência e extermínio de jovens é uma ótima iniciativa, que
cada vez mais deve ser abraçada pela juventude da ICAR, mas também de todas as
outras denominações. Afinal, não são somente os jovens católicos romanos que
estão morrendo. E outras campanhas e propostas que sejam iniciativas de grupos
juvenis também devem ser copiadas, desde que resguardada a vida comunitária
baseada no amor e cultivo de valores, pois esta é a melhor forma de lhes dar
visibilidade.
Por outro
lado, também a sociedade precisa dar a contrapartida. O Estado enfrenta um
problema gravíssimo, que é a superlotação dos presídios. A solução do Estado?
Construir mais presídios. A alternativa mais inclusiva? Em vez de presídios,
construir praças, escolas, áreas de lazer e cultura... Por que não proporcionar
às/aos jovens oportunidades de lazer, trabalho, estudo, saúde, entre outros? E
mais... É necessário assegurar os direitos juvenis, através de políticas
públicas de qualidade. Que as ruas, lugares que elas/es mais frequentam, e onde
se encontram de fato, ofereçam espaços para a vida, a arte, a criatividade, a
interatividade, o trânsito livre, em vez de serem palcos de guerras com
outras/os jovens e com o policiamento militar.
Por isso,
porque precisamos ouvir a voz das/os invisíveis da sociedade, este artigo não é
só um discurso sobre jovens. Muito do que falamos, ao longo dessas páginas, foi
fruto de reflexões bíblicas produzidas em cursos para jovens. Escutando-os,
percebemos o quanto se sentem acuados. Temem o diálogo direto com seus pais.
Reclamam de suas pastoras e pastores, que os tratam como crianças, ou
simplesmente os ignoram. Não sentem a escola como um espaço seu, mas um lugar de
adestramentos, onde, para ter um futuro, devem entregar o seu presente. Admiram
manobras radicais e jogos urbanos que desafiem o policiamento das ruas. Todo este
comportamento, de caráter transgressor, é um grito de socorro. Nossas/os jovens
querem ser respeitadas/os pelo que são, e não pelo que podem oferecer num
futuro próximo. Mas, mais do que isso: eles querem viver. Todo dia, perdem
amigas/os para as drogas, a incompreensão, a intolerância. Sabem que estão
sujeitas/os, um dia, a ter o mesmo destino. O medo os faz reagir de forma
desesperada, algumas vezes. Mas tudo o que fazem revela um grito, um apelo (que
vamos repetir, para ficar bem claro e finalmente ser ouvido): A JUVENTUDE QUER
VIVER.
[2] POSSATO JR., José Luiz;
LUCAS Barbara V.: Juventudes e Meio Urbano. Em: Estudos Bíblicos nº 103 –
2009/3, pág. 104 a 115, Ed. Vozes, Petrópolis, 2009.
[3] Modo de organização social que
tem a fase adulta como auge da vida humana e, consequentemente, parâmetro de
todas as relações.
[5] KRANEN, Frans
van: Me chamavam de Careca, da série: “para ler”. Disponível em: http://www.myspace.com/franskranen/blog/541087522.
Acesso em: 06/12/2010.
[6] Cf. definição em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=juventude. Acesso
em: 16/01/2011.
[7] Basta lembrarmos que tanto os
assassinos de Galdino quanto os dos meninos da Candelária ficaram impunes.
Porém, enquanto uns, réus confessos, ficaram em liberdade graças à sua condição
financeira, os outros escaparam do julgamento por “falta de provas”.
[9] Cf. nota em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u596333.shtml. Acesso
em: 03/01/2011.
[10] Prática de depreciação da/o
outra/o, através de apelidos, chacotas e outras humilhações. Necessidade
gritante de auto-afirmação? Falta de valores? O que já desenvolvemos neste
artigo pode levar a leitora, ou leitor, às suas próprias conclusões.
[11] BORELI, Sílvia H. S.; MELO
ROCHA, Rose de; ALVES OLIVEIRA, Rita de Cássia: Jovens na Cena Metropolitana –
Percepções, Narrativas e Modos de Comunicação, pág. 81, Ed. Paulinas, São
Paulo, 2009.
[12] O machismo, ou patriarcalismo, é um problema antigo, que só
recentemente, e graças aos movimentos feministas, vem sendo questionado,
combatido, ressignificado.
[13] Cf. entrevista do
sociólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário da segurança pública
nacional, ao programa Roda Viva,
exibido em 20/12/2010: http://www.tvcultura.com.br/rodaviva/programa/1232.
Acesso em: 24/12/2010.
[14] WAISELFISZ, Julio Jacobo:
Mapa da Violência 2010 – Anatomia dos Homicídios no Brasil, pág. 65 a 88,
Instituto Sangari, São Paulo, 2010.
[15] Exceto as capitais São Paulo
e Rio de Janeiro, que acusam uma queda acentuada, a partir de 2003, ano que
coincide com a campanha do desarmamento.
[17] Enquanto os outros
evangelhos apontam Pedro como o autor da profissão de fé segundo a qual Jesus é
o Cristo, isto é, o Messias (valendo a Pedro, segundo Mateus, o título de Pedra Angular da Igreja), João coloca
este ato de fé na boca de Marta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário