LER PRA QUÊ?
De tudo o que passarei a discorrer agora, guarde principalmente isto:
ler a Bíblia é comprometer-se. Não é que as outras coisas não tenham
importância, mas tenho pressa de chegar ao que realmente interessa. Além disso,
é como diz aquela canção sobre o profeta: “Tenho que gritar! Ai de mim, se não
o faço!”
Irrita-me o falso zelo pela Bíblia. Dizem por aí que ela é a Palavra de
Deus, que devemos reverenciá-la, que nela se encerra toda a Verdade etc. Mas o
que vejo em nossos grupos é a sua leitura, muitas vezes, servindo apenas para
iniciar as reuniões. Pensa-se garantir, assim, um momento de espiritualidade
para introduzir os temas que “realmente interessam”. Em vez de colocá-la no
centro das reflexões, servindo como um norte, um guia, fazem dela um “aperitivo
a ser servido antes do prato principal”. Ignora-se, com isso, seu verdadeiro
papel: iluminar as situações do dia-a-dia, especialmente aquelas onde a vida do
povo encontra-se oprimida.
Ler a Bíblia deve transformar-nos. Caso contrário, não estamos lendo a
Palavra de Deus. Claro, para que isso aconteça, muito depende da nossa abertura
ao texto. Se nossa atitude não é de escuta, nada assimilaremos do que está
diante de nossos olhos. Mas vejamos o que diz o profeta Isaías: “A palavra que
sai de minha boca não volta para mim sem efeito, sem ter realizado o que eu
quero e sem ter cumprido com sucesso a missão para a qual eu a mandei” (Is
55,11). A verdadeira Palavra de Deus incomoda, inquieta, desinstala, faz pensar
e faz agir.
Esse incômodo, esse compromisso não é com qualquer causa. Segundo Jesus:
“nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céu” (Mt
7,21a). É comum que, para abafar o chamado de Javé, alguns trechos das
Escrituras sejam relativizados. Assim acontece com afirmações categóricas de
Jesus como: “Vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres, depois venha e
me siga” (Mt 19,21). Alguns dizem que, aqui, Jesus refere-se às riqueza e
pobreza espirituais. Dentro dessa lógica, qual a explicação para “dê o dinheiro
aos pobres”? Alguém me disse, certa feita: “Se te chamam para falar a um grupo
de banqueiros, vai... é tua missão! Se te chamam uma segunda vez... repense a
missão!” O Cristo diz de outra forma: “Onde estiver teu tesouro, aí estará o
teu coração” (Mt 6,21). O Reino é promessa de vida abundante para todas e para
todos (Jo 10,10). Logo, o compromisso do Evangelho é com aquelas e aqueles que
ainda não têm vida em plenitude, ou seja, os pobres.
Nos tempos bíblicos, os pobres eram representados por alguns grupos:
leprosos, viúvas, órfãos, estrangeiros etc. A maior parte dos profetas diz que
o louvor agradável a Javé é defender a causa desses grupos (veja, por ex., Is
1,10-11.17). Em Naim, Jesus vê uma viúva ficar “órfã” do filho. Naqueles
tempos, ser mulher não era muito fácil. Sem um marido, então... Agora, imaginem
uma viúva sem filhos homens para ampará-la. Compadecido pela situação, Jesus
restitui a vida ao rapaz (Lc 7,11-17). Só isso já é suficiente para percebermos
que nosso Deus toma partido, isto é, mesmo amando a todas e a todos,
indiscriminadamente, Ele fica do lado dos que mais sofrem, como que a
denunciar: “Olha, pessoal... Essas irmãs e irmãos aqui precisam de um pouquinho
mais de dignidade.”
Os fatos são evidentes. Entretanto, há grupos exímios em distorcer os
textos bíblicos. Por exemplo, em relação à Cruz! Para eles, qualquer sofrimento
é um Calvário. Com isso, alegam estar seguindo a Cristo. “Esquecem” (muito
convenientemente) os motivos que O levaram à crucifixão. Basta qualquer atrito,
seja por um cargo ou função dentro do grupo ou comunidade, seja pelo “horário
nobre” da missa (isto é, o horário onde a missa é mais frequentada), seja por
causa da organização do bingo ou quermesse paroquial, e pronto: “Esta é a minha
provação; estou sendo perseguida/o, assim como Jesus”. Alguns até batem no
peito e citam as Escrituras de cor: “Quem não toma a sua cruz e não me segue,
não é digno de mim” (Mt 10,38). Mas Jesus não morreu por um cargo na Igreja.
Ele foi assassinado! E o motivo da barbárie é muito simples: alguém não gostou
que o Messias defendesse a vida do povo.
Os pseudos-cristãos, isto é, aqueles que não se comprometem com nada nem
ninguém, a não ser consigo mesmos, estão em toda parte. Ministrei, já faz um
bom tempo, um curso de liderança. Lá pelas tantas, o grupo deveria responder a
duas perguntas: 1) “Qual a maior dificuldade do seu bairro, grupo ou
comunidade?”; 2) “Indique com gestos concretos como solucionar este problema?”.
As respostas foram as seguintes: 1) “Problema: esgoto a céu aberto”; 2) “Solução:
fazer uma tarde de louvor”. Mais recentemente, trabalhando o mesmo curso,
alguém me disse: “Não quero discutir a situação dos carroceiros; quero discutir
o meu grupo”. Fica evidente que alguns grupos usam o espaço da Igreja para
auto-promoção. Dizem ser fiéis a Jesus, mas estão preocupados única e
exclusivamente com a própria “salvação”.
O Messias também teve que enfrentar o “corpo mole” de alguns grupos para
os quais falava. Mas Ele não entrava no jogo. Sua reação era enérgica: “Não
pensem que eu vim trazer paz à terra; eu não vim trazer a paz, e sim a espada.
De fato, eu vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua
sogra. E os inimigos do homem serão os seus próprios familiares. Quem ama seu
pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem ama seu filho ou sua
filha mais do que a mim, não é digno de mim. Quem não toma a sua cruz e não me
segue, não é digno de mim. Quem procura conservar a própria vida, vai perdê-la.
E quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 10,34-39).
Diante disso, como afirmar-se cristão e manter-se, ainda, alheio aos problemas
à nossa volta?
O Evangelho diz: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem” (Lc
3,11). Ele não diz “olhe primeiro se o ‘vagabundo’ merece a túnica”, nem “fique
com a melhor e dê a rasgada pra ele”, nem “dê aquela que está sobrando”. O
ensinamento é simples e radical: partilhe. Por que, então, tanta resistência em
ajudar (aliás... ajudar não: restituir a dignidade!) aos mais necessitados?
Que a Bíblia tome seu verdadeiro espaço em nossos grupos. Que nossas
ações sejam pautadas pelos ensinamentos de Jesus. Que a nossa prática seja
sempre inclusiva. E, por fim, que a partir da Bíblia busquemos incessantemente
promover/defender a vida, principalmente onde ela é mais ferida, pois é isso
que Cristo quer de nós. Amém!!!
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