quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Bíblia e Saúde

Buenas... Começa a quaresma, período em que a ICAR realiza sua Campanha da Fraternidade. Este ano, o tema é saúde. A convite da revista Redemoinho, escrevi o artigo abaixo, sempre “daquele jeito”, com linguagem ecumênica e em busca de uma hermenêutica juvenil. Espero suas participações, pois elas certamente enriquecerão e farão dessa reflexão um grande trabalho em mutirão. Com vocês...

SAÚDE E PAZ
“Que a saúde se difunda sobre a terra.”
(Eclo 38,8)

1.      Saúde: ausência ou essência?
Numa reunião de grupo de jovens, foi feita a seguinte pergunta: “O que é saúde?”. Surgiram algumas respostas interessantes, mas a maioria relacionou o assunto à ausência de doença. De certa forma, isso reflete o senso comum. É como se a saúde fosse resultado de um conjunto de medidas preventivas com uma pitadinha de sorte (considerando que algumas doenças são hereditárias, congênitas, adquiridas involuntariamente, ou simplesmente “aparecem”). Com tantos avanços da medicina, possibilitando cada vez mais se chegar à longevidade em plenas condições de se viver a vida com autonomia e dignidade; da estética, atrelando a boa aparência (exigência do Mercado) a condicionamento físico e hábitos saudáveis; da psicologia, tratando adequadamente estresse, ansiedade, depressão e outros problemas que antes eram considerados leves indisposições ou “falta do que fazer”; com tudo o que fazem essas e outras ciências, é de se perguntar: será somente isso? Saúde é ausência de doença? Os avanços vêm para evitar a morte, ou melhorar a qualidade de vida?
O dicionário[1] parece confirmar o senso comum:saúde: sf (lat salute) 1 Bom estado do organismo, cujas funções fisiológicas se vão fazendo regularmente e sem estorvos de qualquer espécie. 2 Qualidade do que é sadio ou são. (...) 7 Bem-estar físico, econômico, psíquico e social (conceito moderno).” Porém, recorrendo à etimologia, encontramos:
A palavra saúde vem de salus. Salus é uma palavra latina que significa, ao mesmo tempo, saúde e salvação. Inclui alma e corpo, espírito e matéria; não separa as coisas. Por isso, quando a Bíblia fala em salvação (salus), convém lembrar a origem bem material desta palavra, a saber, a saúde. A palavra hebraica para indicar a saúde vem da raiz shlm que significa ficar inteiro. Daí vem a palavra shalom, isto é, paz.[2]
Salvação, corpo e alma, ficar inteiro, paz. São significados que parecem estar mais relacionados à qualidade de vida do que à ausência de alguma coisa. Chama particular atenção o fato de salvação e saúde terem o mesmo radical. Ainda hoje deparamo-nos com devoções que separam os planos, desprezando o físico e idealizando o espiritual. Herança, ainda, do dualismo grego. Porém, tendo as duas palavras o mesmo radical, saúde e salvação devem ambas inspirar cuidados com o corpo e a alma. Isto é ficar inteiro, ou melhor, ser por inteiro. Isto é a paz.
2.      Obstáculos para a Paz
Partindo desse princípio, passemos a questionar o que impede a nossa saúde de acontecer por inteiro, plenamente, isto é, o que nos impede de obter a paz. Segundo o Mapa da Violência 2011:
as epidemias e doenças infecciosas, que eram as principais causas de morte entre os jovens há cinco ou seis décadas, foram progressivamente substituídas pelas denominadas “causas externas” de mortalidade, principalmente acidentes de trânsito e homicídios. (...) em 2008, quase 3/4 da mortalidade juvenil deve-se a causas externas (ou também, causas violentas, como costumam ser denominadas). E, como já tivemos oportunidade de expor ao longo do trabalho, o principal responsável por essas taxas são os homicídios.[3]
Logo, devemos concluir que as doenças não são tão preocupantes, no universo juvenil, quanto a violência. Diariamente há jovens que, quando não perdem a vida, ficam mutiladas/os, inválidas/os, traumatizadas/os, sendo vítimas (e também promotoras/es, em muitos casos) de acidentes de trânsito, brigas de gangues, assaltos, estupros, desentendimentos, confrontos com a polícia... Outras/os são contaminadas/os por DSTs, em relações consentidas ou forçadas, ou AIDS/HIV, pelo sexo ou pela partilha de agulhas contaminadas. Isso sem contar os males causados direta e indiretamente pelas drogas.
Não negamos, com isso, que os casos de doença também estão assombrando as/os jovens. Infarto, câncer, AVC, doenças respiratórias, coronárias, problemas anteriormente relacionados aos idosos, mas que hoje assolam todas as faixas etárias. Isso, porém, também é culpa da violência. Uma violência mais silenciosa, mas não menos destruidora. A exploração, as consequências extremadas de um capitalismo insaciável, que acelera cada vez mais os processos, faz as pessoas trabalharem mais, correrem mais, cuidarem-se menos. São os males do nosso século: estresse, depressão, ansiedade...
Outro grande mal do século é o sedentarismo. Como se fosse uma atualização do Mito da Caverna, de Platão, encontramos indivíduos vendo a vida passar na tela de um computador. Seu trabalho e seu lazer estão no mesmo ambiente virtual. Mas aí já estamos falando de uma classe mais restrita de pessoas (pelo menos por enquanto, já que a tendência de um futuro próximo é a virtualização de todas as relações humanas). Voltemos, então, aos problemas de saúde causados pela violência.
O governo tem proporcionado espaços para as discussões sobre políticas públicas para a juventude. Nesse ponto, o CONJUVE tem sido um ótimo exercício de protagonismo juvenil. Mas os avanços são muito tímidos. Não há, por exemplo, um Estatuto próprio para as/os jovens, enquanto crianças e adolescentes já são amparados pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) desde longa data. Embora tenha sido aprovado pela Câmara Federal este ano, o projeto de lei que o institui continua tramitando no Senado. Enquanto não for aprovado, as/os jovens continuarão sem o amparo de leis e direitos específicos para sua faixa etária, que indiscutivelmente merece atenção diferenciada, inclusive na área da saúde.
A religião contribui para alguns entraves quanto à aprovação do Estatuto. Em especial, a questão da homossexualidade, tema sempre polêmico. Segundo nota no site do Senado[4], o impasse está entre a bancada evangélica e o movimento GLBT. Isto se deve ao fato das alas mais conservadoras das Igrejas – e podemos incluir boa parte da ICAR – tratarem a orientação homoafetiva como pecado ou doença.
Aliás, a sexualidade é uma questão que sempre gera embate entre as religiões e as juventudes. Segundo o Ministério da Saúde:
A primeira relação sexual está acontecendo cada vez mais cedo. É muito importante que adolescentes e jovens estejam informados sobre sexo seguro, incentivando-se o uso da camisinha masculina ou feminina em todas as relações sexuais. Os serviços de saúde devem garantir atendimento aos(às) adolescentes e aos(às) jovens, antes mesmo do início de sua atividade sexual e reprodutiva, para ajudá-los a lidarem com a sua sexualidade de forma positiva e responsável, incentivando comportamentos de prevenção e de autocuidado.[5]
Por afirmações como essa, algumas denominações e/ou lideranças religiosas acusam o Estado de incentivar a promiscuidade. “Ignora-se” o fato de que as/os jovens estão se relacionando cada vez mais cedo. O Estado oferece os métodos contraceptivos, as Igrejas (ou lideranças religiosas) discordam e condenam, o ideal de castidade não atrai as/os jovens... O que fazer? Não é de se admirar que uma juventude como a atual seja tão religiosa e, ao mesmo tempo, tão adepta a espiritualidades alternativas. Como dialogar com quem, em vez de acolher, libertar e reintegrar, usa sua autoridade para declarar culpados (isto é, pecadores)?
Falando nisso, há quem recorra à Bíblia para afirmar que a doença é consequência do pecado (2Cr 26,16-20; 1Sm 5,6; Jo 9,2). Jesus, porém, parece discordar. Em Jo 9,3.6-7, Ele não só nega que o pecado seja a causa da cegueira de um rapaz como restaura-lhe a visão. Se o mal fosse castigo pelo pecado, ao curar o rapaz, não estaria o Cristo desautorizando seu pai, Javé? Devemos, então, compreender que o entendimento sobre doenças era limitado naquela época. Aliás, as deficiências invisíveis aos olhos, como a mudez, a surdez e a epilepsia, eram consideradas possessões demoníacas. Em nossos dias, alguém ainda acredita nisso? Devemos, então, confiar na Bíblia quando o assunto é saúde? Voltaremos a este assunto adiante.
Enquanto aguardam o próprio Estatuto, as/os jovens ainda sofrem em outro aspecto, o sócio-econômico. Vejamos o caso de Gabriel Paulino dos Santos Sales, 21 anos. A morte deste rapaz, ocorrida recentemente, chocou o Brasil. Os jornais noticiaram que, após cair de uma laje, o jovem precisou percorrer 90 km, passando por 6 hospitais públicos do Rio de Janeiro, para ser atendido. Em nota[6], a Secretaria Estadual de Saúde, embora negando falta de atendimento, deixa entrever ao menos a falta de estrutura adequada para prestar socorro em tempo hábil e em qualquer casa de saúde. Pouco antes de sua morte, seu pai desabafou:
Se fosse o filho de um deputado, já tinha saído boletim médico logo pela manhã, mas ele é filho de um operário. É muito ruim ver meu filho dentro de uma ambulância, em coma, e andar esse tempo e não ser atendido. Quando é para futebol, Copa do Mundo, o governo libera dinheiro, mas cadê para saúde? Como vou para minha casa tranquilo, se estou vendo meu filho praticamente morto?[7]
Ainda que o comentário sobre a Copa seja, na verdade, o eco da barulheira que tem feito a oposição política ao atual governo, não se podem ignorar as palavras desse homem. O ocorrido, se não é fruto de negligência do corpo médico, deve-se ao menos à morosidade e ao descaso em relação à saúde pública. O sentimento de inferioridade traduz como os pobres são tratados, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Ainda hoje o “sábado”, isto é, intricadas questões burocráticas e de interesses elitistas colocam as leis acima da vida do povo.
3.      A Vida acima da Lei
O sábado é um tema bíblico delicado. Inicialmente, era um dia de descanso (Ex 31,15) e de celebrar a vida. Depois, estendeu-se a um período maior. Surgiram os anos sabáticos: tempo de libertação (Dt 5,15), solidariedade (Dt 15,9-11) e perdão de dívidas (Dt 15,1). Era o tempo de sonhar uma sociedade sem pobreza (Dt 15,4). Tudo ia bem, mas... Aos poucos, a promoção da vida foi sendo substituída pela preocupação com o puro e o impuro (Nm 6,9), e tornou-se mais importante cumprir a lei do que entendê-la. Pesados castigos foram impostos a quem não observasse o dia de descanso (Ex 35,2). Por isso, tornaram-se muito significativas as curas de Jesus aos sábados.
Não por acaso, logo após discutir a lei com os fariseus (Mt 12,1-8), encontraremos Jesus numa sinagoga, em pleno sábado, curando um homem com paralisia numa das mãos (Mt 12,9-14). Ele não pergunta se o rapaz tem convênio, ou é atendido pelo SUS. Ele não quer saber se a pessoa está em dia com o plano de saúde. Ele não pergunta se o moço toma seus remédios regularmente. Ele sequer diz: “volte amanhã que hoje estamos fechados”. Ele simplesmente cura.  Os fariseus, que antes já haviam discutindo sobre os discípulos colherem as espigas de trigo no dia santo, agora decidem matar aquele que restabelece a verdade dos fatos: “o sábado foi feito para a humanidade, e não o contrário” (Mc 2,27).
É função das cristãs e cristãos de hoje perguntar: por que não quereis curar esta jovem, este jovem em dia de sábado? Isto é, que lógica absurda é essa que leva uma pessoa a ter que andar 90 km de ambulância implorando socorro, passando por 6 hospitais, antes de ser atendida? Que sistema é esse que gera tanta violência, a ponto de impedir um enfermo de ser atendido porque os médicos de plantão estão atendendo uma emergência? Que leis são essas que não asseguram, de fato, o direito à saúde? Lembrando-nos que saúde e salvação possuem o mesmo radical etimológico, cumpre, por fim, perguntar: quem vai salvar nossas/os jovens?
No meio católico romano, a saúde será o tema da Campanha da Fraternidade de 2012. Seu lema será: “Que a saúde se difunda sobre a terra” (Eclo 38,8). É dever dos grupos de jovens discutir quais são, de fato, os seus direitos nessa área. Como fazer para que sejam respeitados, ou (em sua ausência) conquistá-los? O Estatuto da Juventude é uma alternativa? E o CONJUVE? E as pastorais ou movimentos religiosos de juventude? Caso o grupo desconheça alguma dessas nomenclaturas ou iniciativas, deve-se buscar informações para enriquecer o debate. O que os grupos não podem é deixar passar esse momento de oração, reflexão e ação.
A mão paralisada é a impotência de controlar a própria vida. Ao restituir os movimentos, a força, a saúde à mão do moço da sinagoga, Jesus o impele a ser novamente o protagonista de sua história. O que paralisa nossas mãos, isto é, o que nos impede de decidirmos os rumos da saúde-salvação-paz das/os jovens? De que forma podemos combater esse poder que nos oprime?
Sem dúvida, é fundamental continuar a discutir a cura do câncer, da AIDS, do ebola etc. As DSTs devem continuar sendo uma preocupação. Não podemos ignorar os males do século (estresse, ansiedade, depressão...). Mas parece que já existem especialistas empenhados em resolver essas questões. Então o que fazer? Que tal respondermos às seguintes perguntas: o que mais priva as/os jovens de manter a saúde-salvação-paz? O que as/os impede de ter qualidade de vida, de ter vida plena? Quais as causas de seus males? É possível combatê-las? Juntos ou sozinhos? De qualquer jeito ou de forma sistematizada? Através das instituições ou longe delas? Que ações concretas já existem ou poderão ser organizadas? Quais as parceiras e parceiros que poderão ajudar?
Ainda que pouco possamos fazer, se conseguirmos ao menos colocar a saúde na pauta dos centros de decisão, já teremos dado nossa contribuição para o debate. Porém, não descansemos nunca, ousemos sempre mais. Melhor será o dia em que o poder realmente emanar das mãos (curadas, libertas) do povo, garantindo saúde-salvação-paz-vida plena para nossas/os jovens.



[1] Utilizamos o dicionário online Michaelis por considerá-lo, quanto a este verbete, o mais completo. Ver: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=sa%FAde
[2] MESTERS, Carlos; Os Profetas e a Saúde do Povo – Série “A Palavra na Vida”, pág. 8 a 9. CEBI, São Leopoldo, Brasil, 2008.
[3] WAISELFISZ, Julio Jacobo: Mapa da Violência 2011 – Os Jovens do Brasil, pág. 75, Instituto Sangari, São Paulo, 2011.