Enfim, concluí o projeto de extensão do meu
Estágio de Letras pela ULBRA. A ideia era que as educandas e educandos
escrevessem um conto. Os melhores seriam selecionados para se tornarem filmes “estrelados”
pelos próprios jovens. Como o colégio que me acolheu (EMEF Olímpio Vianna
Albrecht) estava respirando os ares do projeto Leituração (promovido pela Secretaria
de Educação de São Leopoldo/RS), atividade que, visando incentivar a leitura,
faz com que algumas escolas da cidade “adotem” um autor gaúcho para ser lido e
homenageado, desenvolvemos o conto inspirados pelo livro “A Truta”, de Luís
Dill (site aqui). Em virtude do tempo de Estágio, acabou que a gurizada transformou
em filme um conto que eu mesmo escrevi. Mas creio que, ainda assim, o objetivo
principal, que era uma produção das/os jovens, foi alcançado.
Abaixo segue o vídeo...
E, mais abaixo, o conto na íntegra:
O MISTÉRIO DA TRUTA
Era
noite! Eu estava escondido num baú, um móvel antigo como tantas coisas que
guardávamos na garagem de casa. Juntávamos tanto cacareco que o carro mesmo
dormia no pátio. Naquele momento, eu era o detetive Carlinhos, tinha 10 anos e
minha missão era descobrir o que papai fazia sozinho naquele “depósito” todas
as noites.
Por
uma fresta, espiei-o sentar-se na poltrona e abrir uma pasta. Mas não era uma
pasta qualquer. Dela saía uma luz azul. Deduzi ser um laptop! O que era assim, tão sigiloso que eu, mamãe e meus irmãos
não podíamos saber? Ele ficou horas escrevendo, sorrindo, admirando, pensando,
com um fone de ouvido. Então, um barulho na rua, parecia vir do carro. Papai
correu para ver. Saí do baú, o coração palpitando, a curiosidade vencendo o
medo de descobrir o que estava acontecendo lá fora. Corri para o computador. Uma
luz estava piscando. No centro da tela, uma mensagem: “Desvende o mistério da TRUTA. Clique aqui!” E agora? Eu queria
mesmo descobrir o que meu pai tanto admirava diante daquela máquina? Cliquei
depressa, mais de medo dele voltar do que de outra coisa.
Um novo barulho, desta vez ensurdecedor. Tudo ficou escuro. Acordei em minha
cama, com 15 anos de idade.
Levantei
num sobressalto. Corri para a cozinha. Papai? Mamãe? Carol? Pedro? Ninguém em
casa... Minha mochila estava na mesa. Mamãe deixara-me um bilhete: “Volto mais tarde”. Alguém bateu na
porta: “Carlos, depressa! Estamos
atrasados!” Eu não conhecia aquela pessoa: “Desculpe, mas quem é você?” Era uma tal de Melissa. Perguntei de
onde nos conhecíamos. Ela me recriminou: “Amnésia
de novo? Por que você não toma seus remédios direitinho? Anda, pega a mochila
que hoje tem prova!”
Prova?
Melissa? 15 anos? Mas a última coisa de que me lembro é aquele baú lá na
garagem... “Ih, lá vem você de novo com
essa história? Desencana! Temos um problema maior agora: qual é mesmo a fórmula
da hipotenusa?” Hipotenusa? Seria algum monstro daqueles filmes do
Hércules? Tinha uma com cabelos de cobra... Não, aquela era a Medusa! Quem é
essa Hipoten... Ei, espere um pouco! “Ah,
Carlos, anda! Mas que coisa, estamos atrasados! Quer saber, fica aí viajando
que eu tô indo!” Não, é sério! O que tu sabe sobre a Truta? “Ah, chega! Fui, hein! Tchau!” Será que
essa Truta também é um monstro grego? Ei, me espera! Eu não queria ficar
sozinho. Essa Melissa parecia gostar de mim. Eu me sentia seguro com ela. E
nessa situação, sem saber o que estava acontecendo, eu precisava de alguma
proteção.
Hipotenusa,
cateto, isósceles, eu estava apavorado. Já estava esperando que detrás de
alguma página saltasse o Minotauro, ou um Cíclope... Por que meu irmão adorava
contar aquelas histórias de monstros pra mim? Eu nem mexia na prova, queria
ganhar tempo. Será que já havia chegado alguém em casa? Alguém que soubesse notícias
do papai? O que aconteceu depois que eu mexi no notebook dele? Melissa deve ter visto como eu estava assustado,
pois me passou a cola da prova. Mais monstros mitológicos surgiram na minha
mente. Ela bem que tentou me ajudar, mas eu realmente não sabia nada sobre
aquela matéria.
Na
saída da escola, Melissa parecia muito brava: “Tanto dia pra perder a memória e tu foi sair da casinha justo hoje?
Meu, essa foi a pior prova de toda a minha vida! Essa professora é maluca!”
Tentei prestar atenção, mas eu não aguentava mais de curiosidade. Interrompendo
suas queixas, perguntei se ela sabia o que havia acontecido com o meu pai. Ela
parou, olhou-me com ternura e tristeza. Disse que não sabia como me contar
aquilo outra vez. Mas aquilo o quê? Ela suspirou, pegou em minha mão e disse o
que eu mais temia ouvir. Ele morrera naquela noite em que me escondi no baú. Um
psicanalista explicou pra mamãe que eu sofrera um trauma muito grande, que
seria normal eu me esquecer do tempo presente e reviver aquele dia, pois eu me
sentia culpado pelo que aconteceu. De fato, se eu tivesse saído do baú antes,
se eu tivesse feito algum barulho para o pai perceber que eu estava ali. Eu
teria levado uma bronca, ele teria me levado para dentro de casa com um belo
puxão de orelha, mas estaríamos todos bem agora.
Quis
chorar, mas não conseguia derramar uma lágrima. Pelo jeito, eu já havia chorado
muito a morte dele. O desejo que dentro de mim brotava era o de descobrir o tal
mistério da Truta. Sentia que aquilo poderia solucionar o problema. Quase não
escutei Melissa me dizendo alguma coisa sobre os mortos não voltarem. Apressei
o passo, pois queria chegar logo em casa e descobrir o que acontecera com o laptop. Melissa corria, mas mal
conseguia me acompanhar. Ela dizia que eu já havia tentado aquilo milhões de
vezes. Mas que coisa! Ela estava ali para me ajudar, ou me desanimar? Eu já
estava começando a ficar bravo.
Chegando
em casa, minha irmã estava esparramada no sofá. Onde está o notebook do papai? Mamãe vendeu! Como
ela pode fazer isso comigo? Mamãe não aguentava mais ver você tendo essas
recaídas e se enfiando no quarto com essa porcaria! Melissa me puxou pelo
braço, dizendo que minha irmã estava certa. Eu já ia xingá-la quando, fazendo
um sinal, ela me puxou para fora e começou a contar que mamãe lhe mandara se
livrar do laptop, mas ela não teve
coragem e resolveu guardá-lo. Olhei novamente com simpatia para aquela (ainda
desconhecida) amiga. Fomos até sua casa. A visão daquele computador trouxe-me
de novo as lembranças daquela noite. Sentados no chão do quarto dela, abrimos e
ligamos a máquina. Novamente a tela azul, o coração praticamente saltando pela
boca. Mas que decepção... Abriu-se um plano de fundo normal, sem avisos, nem
luzes piscando, nem links para clicar.
Tentei
localizar alguma pasta ou arquivo com a palavra “truta”; nada! Melissa começou
novamente a velha ladainha. Parecia que, de fato, meu pressentimento era apenas
uma fuga da realidade, o simples desejo de que nada daquilo tivesse acontecido.
Mas não me dei por vencido: procurei no Google.
Descobri que a truta era um peixe de carne muito apreciada. Havia também a
ópera de um tal de Schubert. A música
falava de um peixe-truta fisgado por ser curioso. Se não tivesse dado
importância à isca, não ficaria preso ao anzol. Será que era isso? Se eu não
fosse curioso, teria salvo papai? Mas foi ele que correu até a rua, ver o que
estava acontecendo. Teria feito isso mesmo que eu não estivesse lá. Como eu
poderia tê-lo avisado? Melissa me chamou a atenção para outros resultados da busca.
Havia um tal de Recanto da Truta. Perguntei se já teríamos ido lá. Ela balançou
a cabeça negativamente. Então vamos para lá agora.
Rua
dos Marinheiros, nº 112. É aqui! Entramos e fomos atendidos por uma simpática
senhora. Era um antiquário. Ela perguntou o que nós queríamos, pois era-lhe
estranho dois jovens entrarem em sua loja. De um modo muito confuso, tentei
resumir nossa história. Vendo meu embaraço, Melissa foi direto ao ponto: “O pai dele morreu e achamos que a senhora
pode nos ajudar”. A mulher ficou olhando os dois, aparentemente sem
entender o que queriam. Melissa continuou: “Achamos
que a morte do pai dele tem a ver com o mistério da Truta”. A velhota olhou
mais fixamente para mim: “Você tem os
olhos do seu pai.” Empalideci. O que essa doida está dizendo agora? “Há tempos dei um presente a ele, um quadro
chamado ‘A Truta’, em homenagem a uma peça musical de mesmo nome, composta por Schubert.”
Mas como? A senhora conhecia meu pai? “Sou
uma tia distante. Há muito procurava o filho da minha irmã. Faz 5 anos que o
encontrei. Infelizmente, uma semana depois ele morreu.” E por que a senhora
não nos procurou, não falou conosco? “Falei
com tua mãe, mas ela reagiu friamente. Acho que ela não acreditou em mim...”
Fiquei envergonhado. Melissa me pegou pelo braço e fomos para a porta. Minha
tia, então, falou: “O quadro ainda deve
estar em tua casa. Quer mesmo descobrir o mistério da Truta? Olhe fixamente
para ele!” Agradeci com um aceno de cabeça e saí arrastado pelos braços.
Minha nova amiga tinha um jeito nada carinhoso, mas muito eficiente, de me
tirar de situações embaraçosas.
Chegando
em casa, mamãe já estava aflita, perguntando por mim. Calma, mãe! Fomos a
uma... “A uma sorveteria”,
apressou-se Melissa em dizer. Depois fiquei sabendo que minha mãe tinha
verdadeiros chiliques quando eu tocava no assunto da Truta. Perguntei se ela
poderia me contar novamente como papai morreu. Pacientemente, ela disse que,
naquela noite, a polícia trocou tiros com uns bandidos. Papai foi ver o que
estava acontecendo e acabou atingido por uma bala perdida. Ele ainda deu alguns
passos, mas caiu na garagem, por cima de uma velha mesa. Fora este o barulho
que eu escutara por último. Então me lembrei, nitidamente, que olhara o corpo
caído no chão. Depois disso, só conseguia me lembrar de ter acordado hoje.
Mamãe emendou: “Bom, nem preciso te dizer
que deves fazer a lição de casa e arrumar o teu quarto, né, guri!?” Estava
anoitecendo. Acompanhei Melissa até a porta. Ela pegou minha mão e disse: “Sabe que eu gostaria mesmo de voltar ao
passado”. É, por quê? “Quem sabe eu
poderia ser mais clara quanto aos meus sentimentos por você, e não teríamos nos
tornado somente amigos”. Dito isso, deu-me um beijo no rosto e foi-se
embora.
Um
calorão me subiu pelo pescoço. Fiquei um tempinho parado, sentindo a umidade do
toque dos seus lábios em minha face. Pela primeira vez, naquele dia, estava
realmente muito feliz. Mas, então, lembrei-me do quadro e corri para a garagem.
Mamãe não mexera em nada ali. Estava tudo igual àquela noite. Olhei demoradamente
para o baú e para a poltrona onde papai estivera sentado. Então comecei a
revirar tudo, todos os móveis, todas aquelas coisas antiquadas, até encontrar o
quadro escondido atrás de um rádio muito antigo. Limpei a poeira e fiquei
olhando o desenho de uma truta. Que coisa idiota, pensei. Ficar olhando essa
moldura não vai adiantar nada. Dei mais uma volta pela garagem, observando os
móveis. Bom, já fiz tanta coisa idiota hoje... não custa fazer mais uma. Voltei
a olhar fixamente o quadro. Nada. Já estava ficando com sono quando uma coisa
estranha começou a acontecer. O peixe começou a se mexer. Fiquei tonto e senti
minha cabeça girar, até que adormeci.
Acordei
dentro do baú, novamente com 10 anos. Papai estava lá, mexendo no laptop. Sem pestanejar, corri para o
colo dele, dei-lhe um abraço demorado. Então me lembrei de onde eu estava e o
que estava fazendo. Olhei para ele. Parecia assustado, mas contente em me ver.
Perguntou o que eu estava fazendo ali. Disse que queria saber o que ele estava
fazendo. Ele me mostrou. Estava no MSN
com aquela tia maluca. Então ouvimos novamente o barulho. Papai quis levantar.
Sabia que precisava impedi-lo. Então perguntei o que ele estava ouvindo no fone
de ouvido. Mesmo demonstrando preocupação em saber o que estava acontecendo na
rua, ele se sentou, deu um dos fones para mim e explicou que aquela era uma
ópera chamada “A Truta”. Ele a estava
escutando por curiosidade, porque a tia dera-lhe um quadro com o mesmo nome, e
ele queria saber o que havia de especial naquela música. Sorri pensando que,
dessa vez, a truta não morderia a isca. Então começou a piscar o aviso na tela
do computador: “Desvende o mistério da
Truta. Clique aqui.” Papai clicou. Era uma receita de um ótimo assado,
segredo de família. Aparentemente, sua tia gostava de tudo que tivesse uma
truta envolvida. Papai me levou para dentro de casa na sua garupa. Dormi muito
feliz naquela noite, achando que tudo não passara de um sonho.
No
domingo seguinte, estávamos jogando bola, eu e meu pai. Chutei a bola longe e fui
buscá-la. Do outro lado da rua, havia um caminhão de mudança. Eram os novos
vizinhos que estavam chegando. Uma menina da minha idade veio me trazer a bola.
Agradeci e perguntei o seu nome. Muito sorridente, ela me disse: “Oi, meu nome é Melissa. E o teu?”