domingo, 15 de dezembro de 2013

Juventudes – Tolerância e Solidariedade num Mundo Pluralista

Alguém aí duvida que estamos num mundo plural? A diversidade é um fator essencialmente humano. Temos velhos e crianças, negros e amarelos, homens e mulheres (homos ou heteros), cristãos e muçulmanos, ditadores e democratas, apolíticos e ateus, dominantes e dominados. Epa, dominantes e dominados? Sim, dominantes e dominados! Sendo assim, é possível dizer que vivemos num mundo pluralista?

Perguntinha complicada... O cara começa afirmando que o mundo é plural e, pouco depois, quer saber se ele é pluralista. Não é tudo a mesma coisa? Não, oras! Ser plural é ter, por definição, mais de uma possibilidade. Por outro lado, ser pluralista é mais que admitir a existência do diferente; é querer e promover a diversidade.

Então voltemos à pergunta: Vivemos num mundo pluralista? Bom, se aceitamos a existência de dominantes e dominados, admitamos também que aos primeiros só interessam suas próprias diferenças. Quem não pertence à elite, ou aceita as regras, ou é varrido pra debaixo do tapete. E parece que tem muita gente com medo de se misturar à poeira, pois compramos direitinho as ideias plantadas pelos nossos opressores. Assim, passamos a aceitar o diferente como errado, inferior.

Um exemplo simples: A Paz mundial. Qual é a tua ideia de Paz? Um lugarzinho afastado, no alto da serra, passarinhos cantando, o barulho da água correndo, ninguém brigando com ninguém? Ah, tá... Tira o alto da serra, os passarinhos cantando e o barulho da água, mas deixa ninguém brigando com ninguém. Que maravilha! Todo mundo se entendendo, uma comunidade sem partidos políticos, uma só religião, homens que se comportam como homens, mulheres que se comportam como mulheres, velhos e crianças respeitando seu papel na sociedade... Resumindo: Tudo correndo conforme o combinado, certo!? Pois bem... Lamento informar, mas isso não é Paz; é uma ditadura!

E o que são as elites dominantes senão um bando de ditadores? Eles ditam a moda, o uso correto da língua, a opinião da grande mídia, os comportamentos social, econômico e sexual, as boas maneiras e os bons costumes, toda a nossa cultura, enfim. É a padronização, isto é, a uniformização, prática comum até em movimentos auto-denominados ecumênicos. Quer ser bem sucedida ou sucedido, seja assim, e pronto!

Então, o que fazer!? Deixar que impere a violência, que os povos se matem? Pra começo de conversa, não há violência maior do que impor aos outros um único modo de ser, pensar, orar e agir. Isso não é harmonia, mas o auge da intolerância. O diferente não é digno sequer de solidariedade porque não deve ser incentivado. Ora, a supressão de outras culturas, outras opiniões, outras crenças, outros modos de ver o mundo, isso sim é deixar que impere a violência, é matar, isto é, extinguir as vozes discordantes.

Ao lado das mulheres, uma das principais vítimas desse sistema excludente são os jovens. Ambos são cooptados pelo padrão ditado por homens brancos, ricos e adultos. Logo, ser jovem e mulher ao mesmo tempo não é lá uma situação muito confortável. Negra e pobre, então... Mas vamos nos concentrar nas juventudes, foco desta reflexão.

Está em voga a discussão em torno da maioridade penal. Querem maior sinal de intolerância e falta de solidariedade do que isso? Responsabilizar um grupo pela criminalidade e violência do país porque é composto por jovens – e, nas entrelinhas, negros e pobres, pois para estes é que os presídios são construídos. A coisa funciona mais ou menos assim: eu ponho você à margem da sociedade por não preencher os requisitos necessários para estar entre os “eleitos”, e se você se rebelar, sofrerá as consequências. Dito de outra forma: eu crio os monstros e os alimento para, no tempo oportuno, colocá-los numa arena e proporcionar pão e circo aos meus súditos. Enquanto a população sacia sua fome de “justiça”, ninguém questiona as verdadeiras causas (e causadores) da violência.

Percebem quem deveria estar preso nessa história? Enquanto isso, os presídios vão ficando superlotados, não dos mentores, mas das vítimas de um sistema violento. Uma vez punidos, quantos se regeneram? Não acontece o contrário? A pessoa entra como ladrão de galinha e sai como membro de quadrilha organizada. É isso que queremos? Cada vez mais jovens especializados no crime? Quando vamos questionar as razões para os crimes de colarinho branco serem tratados de forma infinitamente mais branda do que o roubo de um par de chinelos? Até quando vamos dar razão a quem decide jogar sobre os jovens sua própria culpa?

Ok, apontar os culpados, por si só, não resolve. No fundo, sabemos quem eles são. Entretanto, de modo geral, a população se sente impotente para lutar contra seus verdadeiros opressores. Mas é desejo de todas e de todos vivermos num mundo melhor. E isso não é de hoje. Em seu livro, o profeta Joel narra sua imagem de um mundo perfeito: “Depois disso, derramarei o meu espírito sobre toda carne. Vossos filhos e filhas profetizarão, vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão visões. Até sobre os escravos e sobre as escravas, naqueles dias, derramarei o meu espírito” (Jl 3,1 – Bíblia católica; Jl 2,28 – Bíblia protestante). Homens e mulheres, livres e escravos, profetizando em pé de igualdade. Anciãos, consultados normalmente por sua capacidade de ver, isto é, analisar a realidade, sonharão. Pessoas jovens, consideradas sonhadoras (Ingênuas? Aéreas? Inexperientes?), serão capazes de ver. Que mundo perfeito... Mas conta com duas diferenças em relação ao nosso. Primeiro, isso é fruto do Espírito de Javé. Segundo, não adianta cruzar os braços e ficar esperando; é preciso lutar: “Forjai de vossas relhas espadas, e de vossas podadeiras lanças. Que o fraco diga: ‘Eu sou um herói!’” (Jl 4,10). Ou seja: Apontar os culpados não resolve, mas descobrir quem são é passo fundamental para mudarmos a realidade.

Como mudar? A concretização da profecia de Joel se dá em Pentecostes (At 2,1-12). O Espírito Santo, em forma de línguas de fogo, desce sobre todos os que estavam reunidos (portanto, não somente sobre os Apóstolos) e eles (e elas?) começam a falar em outras línguas. Os ouvintes, provenientes de diversas nações (e culturas e religiões, consequentemente), conseguem compreendê-los. Mais que isso: ficam maravilhados. O resultado já sabemos: o cristianismo se espalha pelo mundo. Porém, será que, com isso, vem junto a mensagem daquele dia? O texto não fala de conversões em massa. Aliás, não registra uma conversão sequer. Fala das línguas dos ouvintes, mas não de quais línguas eram faladas sob inspiração divina. Ora, então que mensagem é essa que deixa a todos maravilhados? Em Babel, o projeto de uma única língua, uma única cidade, uma única torre “capaz de tocar o céu” caiu por terra, e os homens (e mulheres), apesar de falar uma língua só, não mais se entendiam (Gn 11,7). Então, que línguas são essas que os homens (e mulheres) de diversas nações são capazes de entender? Não seria a linguagem do amor? Não seria o amor capaz de respeitar as diferenças e propor, em vez da uniformidade, a unidade? Não seria a unidade capaz de gerar tolerância e solidariedade entre os povos? Jovens tendo visões e anciãos sonhando não seriam um sinal dessa unidade? Conseguiríamos, portanto, mudar essa realidade de exclusão dos que não se enquadram no padrão uniformizador das elites se acolhêssemos os diferentes (jovens, negros, pobres, mulheres, estrangeiros, bêbados, prostitutas, moradores de rua...) da maneira como são? Em vez de mudá-los, não seria melhor perguntar por que não são aceitos? Visto assim, será que é muito difícil mudar?


Se queremos a Paz, preparemo-nos para a Paz. Temos que cobrar, sim, das autoridades, fazer com que respeitem nossos direitos. Mas precisamos ter ciência de que nossa luta não é só nossa. Jesus acolhia bêbados e prostitutas, mas não se tem notícia de que era bêbado e prostituto. Abraçava leprosos, mas não se tem notícia de que tenha morrido por causa da lepra. Acolher o outro não é tornar-se semelhante a ele, senão na luta por um mundo mais justo e fraterno, tolerante e solidário. Não deveria ser esta a proposta dos movimentos ecumênicos? Não seria este o papel do autêntico ecumenismo (não o uniformizador, mas o pluralista, gerador de unidade)? Estejamos atentas e atentos a isto: Os jovens querem viver! Os idosos querem viver! As mulheres querem viver! Os negros querem viver! Ora, quem é capaz de impedir isso? Esse, senhoras e senhores, é o verdadeiro inimigo.

sábado, 5 de outubro de 2013

São Francisco, um livro e a Perfeita Alegria

Estou escrevendo um livro, um romance. Chique, né!? Que experiência maravilhosa! Bom, e ontem foi dia de São Francisco, mas eu não consegui postar nada. Por isso, hoje, querendo dedicar algumas palavras ao homem cuja espiritualidade inspira a muitos, inclusive a mim -- e aproveitando o ensejo para divulgar meu ensaio --, resolvi divulgar um trecho da obra. Mas, antes, um pequeno esclarecimento: trata-se de uma carta onde um rapaz, que está num programa de proteção a testemunhas, comunica-se com seu amigo padre. O tema da história é segredo, pelo menos por enquanto. Mas tenham certeza de que tenho em vista a luta do povo e dos jovens enquanto escrevo. Então, sem mais delongas, segue um pedacinho do filho que ainda não pari totalmente:

Santa Maria, 03 de outubro de 2010.
Fraterno irmão,                    
A Paz e o Bem!          
Amanhã a gente comemora o dia do Chicão. Como eu gostaria de estar aí. O pessoal aqui é bem bacana, mas dia de São Francisco, pra eles, é um dia normal como todos os outros. Fazem falta nossas festas...
Nesses dias de exílio, faz bem meditar a Perfeita Alegria, tema tão caro ao Poverello d’Assisi. Levei anos para entender que não se trata de uma atitude passiva, um conformismo, como se o que nos acontece fosse fruto de um destino inevitável. Antes, é um estado de espírito ao qual só chegam aquelas e aqueles que gozam de plena liberdade. A Perfeita Alegria, meu irmão, consiste em não permitir que pessoas mal intencionadas e fatos desagradáveis abalem nossos ânimos, nossa fé.
Custei para chegar a essa conclusão. De início, eu pensava: “Se Francisco foi tão revolucionário, tão defensor dos pobres, como pode pensar que devíamos ficar alegres mesmo diante da pior desgraça, da pior injustiça?” Acontece, meu caro, que eu confundia alegria com gratidão. Ora, uma coisa é aceitar que o mal existe; outra é conformar-se, resignar-se, tomá-lo por inevitável vontade de Deus. Vista dessa forma, a mensagem do Irmão de Assis passou a fazer todo sentido para mim.
E como preciso exercitar a Perfeita Alegria nesse tempo de aflição... Não nasci para ser vigiado, guardado a sete chaves, impedido de estar no meio do povo. Os últimos já são os oito meses mais longos de toda a minha vida. Espero, do fundo de minh’alma, que termine logo o julgamento – e os meus agressores sejam penalizados – para que possa voltar à minha terrinha. Entretanto, como são da Brigada Militar, estou prevendo que tudo acabará em pizza, e eu terei que ficar, ad eternum, em Santa Maria.
Enfim... Chega de aborrecê-lo com as noias do meu ócio degenerativo. Vou voltar ao “amaro farniente”. Ademais, sei que estás ocupadíssimo com os jovens e as questões de tua Paróquia. Dê-me notícia de teus afazeres. Um abraço!
Atenciosamente,                    
Irmão Beto!               

terça-feira, 3 de setembro de 2013

JOVENS, EU VI!

O texto abaixo foi extraído do meu antigo blog "osperegrinos". Há tempos, tenho o propósito de migrar meus textos de lá pra cá, mas... Enfim, uma hora tinha que começar. O que ora segue está revisto e atualizado.

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Meninas e meninos, eu vi! Foi nos idos invernais de 2010, lá em Brasília/DF, mesma terra onde profetizou e morreu Gisley, jovem e padre assessor da juventude. Morreu não... Foi assassinado! Aliás, como acontece com a maioria dos profetas. O fato é que eu vi, e isso aconteceu mais ou menos um ano depois da partida dele.

Por um tempo, eu via – estarrecido – mãos juvenis capazes de matar, sem questionar muito por quais lentes me foi possível ter esta visão. Porém, a partir de novas experiências e à luz de uma nova lente, vi também histórias juvenis tecendo vida, ainda que timidamente, dispersas, isoladas e confusas. E vi que a juventude não tinha uma só, mas várias faces, um caos a ser ordenado.

Era madrugada e havia um jardineiro. Mas não precipitemos os fatos. Convém dizer, antes, que eu não vi sozinho. Havia mais gente lá! Enxergamos primeiramente um túmulo e, então, entramos. Deveríamos avistar um corpo, mas o sepulcro estava vazio. Tomados de espanto, preocupamo-nos mais com a profanação de um cenário de morte do que com a possibilidade da vida, de uma nova criação, um novo jardim. Foi preciso que uma mulher gritasse “Onde ele está?” para despertarmos. Não fosse isso, quanto tempo mais ficaríamos lá dentro, contemplando o nada, confinando nossa gente a um espaço destinado à morte?

Então, vi jovens de diversos grupos saindo de suas catacumbas pessoais, umas e outros logo se acomodando a novas tumbas, mas a grande maioria saindo à procura de uma habitação de vivos. Todos procurando o caminho certo, sem conseguir, todavia, encontrá-lo. Por sorte, conosco caminhava Madalena, que forçou a vista para enxergar alternativas à realidade nua e crua e deu-nos a Boa Notícia: “Eu vi o Senhor!” Diante da novidade, percebemos que não bastava sairmos de nossas covas. Precisávamos aprender a enxergar por nós mesmos, treinar nosso olhar. Além disso, era preciso saber, ainda, o que – ou a quem – procurávamos.

Já falei que vimos um jardineiro? Melhor dizendo: não vimos, não; mas ele estava lá! Conseguimos vislumbrar o jardim, mas nos esquecemos de que, para estar tão bonito, era necessário alguém que o cultivasse. Cabisbaixos, ignoramos a presença de um homem que nos observava. Somente Madalena, inconformada, dirigiu-se a ele, perguntando se tinha levado o corpo do Senhor para outro lugar. Qual não foi sua surpresa ao descobrir que aquele à sua frente não era um jardineiro comum, mas o responsável pela beleza do Jardim da Criação, ou seja, o amado a quem ela tanto procurava? Nesse momento, amanheceu e Madalena pode vê-lo claramente.

Teimávamos em não acreditar nos fatos. Lamentávamos a morte, em vez de perguntar por que mataram o Mestre. Ele fora executado como criminoso político, isso nós sabíamos. Mas por que, se ele falava de um Reino que nem deste mundo era? Tínhamos muito medo de fazer esta pergunta. Entretanto, quando amanheceu, fomos às ruas. Por que Ele morreu? Por que morrem os jovens? Quem está nos matando? Por que estão fazendo isso? Quando percebemos que a morte dele não tinha sido acidental, deduzimos não terem, também as demais, acontecido por acaso. E isso – essa grande descoberta – certamente vai incomodar quem está querendo nos matar, sufocar, silenciar, tornar invisíveis. Entretanto, não sem uma boa dose de coragem, decidimos enfrentar esses assassinos, uma vez que, igual à Madalena, “vimos o Senhor”.

Abrindo-se nossos olhos, vi a juventude se organizando em mutirão. Cada qual preservando sua identidade. Cada qual voltando para seu lugar de origem. Mas todos dispostos a manter a unidade. Percebemos, finalmente, que com grupos pequenos, agindo em rede, derrotaremos o opressor. Assim, vi os grupos trocarem juras de comunhão e fraternidade, prometendo multiplicar esse encontro, essa experiência em suas bases.

Enfim, meninas e meninos, foram essas – além de outras, a serem contadas em outro momento – as coisas que eu vi. As juventudes, dispersas em meio à escuridão da madrugada, ansiosas pelo sol prestes a despontar, perceberam na Bíblia uma ótima ferramenta para ver e seguir a Cristo, o Jardineiro. O encontro, em local e situação inesperados, porém livres das amarras institucionais, só foi possível porque deram-lhes novas lentes, as da Hermenêutica Juvenil.

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[*] Texto inspirado em Jo 20,1-18 e no Seminário Nacional de Bíblia e Juventudes, acontecido em Brasília/DF, de 16 a 18/07/10, promovido pelo CEBI, em parceria com a CAJU, a REJU, o FALE e a Trilha Cidadã, entidades religiosas que trabalham com juventudes do meio ecumênico.



sábado, 24 de agosto de 2013

ENTREVISTA COM JESUS

– Olá, telespectadores do canal 10, ouvintes da Rádio Confiante e internautas que nos acompanham pela WebTV. Eu sou Johnson Ares e este é mais um... “Conhece a Ti mesmo”. O convidado de hoje é considerado, no mundo ocidental, um Deus. Ele é alto, forte, cabeludo, barbudo... Calma, meninas, não é o Thor! Produção, alguém tira essas histéricas daqui? Bem, voltando... Foram escritas várias biografias sobre ele, das quais quatro são as mais lidas. E ele vem aqui, hoje, para falar um pouquinho mais sobre si mesmo. Pode entrar, Jesus!
(Aplausos e musiquinha... A um aceno de John, tudo se aquieta)
– Jesus, Emanuel, Jeoshuá, Cristo... São tantos nomes, fora os títulos: Mestre, Senhor, Estrela da Manhã, Bom Pastor, Nazareno, Filho do Homem... Como quer ser chamado?
– Olha, John! De fato, são muitos nomes... Mas pode me chamar de Jesus. É simples, é o mais conhecido... Gosto dele!
– Jesus, das quatro biografias mais conhecidas, isto é, dos Evangelhos, qual te retrata melhor?
– Todos e nenhum ao mesmo tempo. Quero dizer, nenhum deles conta as coisas como realmente aconteceram, mas todos cumpriram seu objetivo, que era dar um sentido teológico à minha morte e ressurreição.
– Quer dizer que nada do que está escrito ali aconteceu de verdade?
– Claro que tudo aquilo aconteceu. Os escritos formam uma fotografia, uma imagem dos acontecimentos. Como você sabe, os retratos não mostram toda a cena, mas somente aquilo que seus autores querem destacar.
– Entendi... E qual dos teus retratos mais te agrada?
– Todos são muito bonitos. Mas eu acho um muito engraçado, uma vez que me pintaram de galinha.
– Galinha?
(John solta uma gargalhada, a plateia o acompanha)
– Sim, tá lá em Mt 23,37 e Lc 13,34.
– Arequê, pega uma Bíblia pra mim!
(Um japonesinho sai correndo e logo volta, trazendo uma caixa. John tira um livro de dentro dela e começa a folheá-lo)
– Ah, entendi! Mas nunca vi essa imagem nos vitrais e quadros das Igrejas.
– Fazer o quê, John? Também gosto daquela cena em que sou uma mulher varrendo o chão até encontrar a moeda perdida (Lc 15,8-10), mas nem os artistas da Renascença, com todos seus avanços, ousaram me pintar assim.
– Sim, mas nem eu ouso te imaginar como uma mulher...
– Bobagem! Sendo verdadeira pessoa humana, eu não tinha como vir assexuado. Mas tanto faz como tanto fez se eu viesse como homem ou mulher.
– Vejam vocês! Mas por que você veio a este mundo, afinal de contas? Você já sabia que ia morrer numa cruz?
– Gosto de falar por imagens, John! Vocês, brasileiros, têm um cara que soube definir muito bem, numa imagem, minha missão na Terra. Frei Carlos Mesters, conhece? Pois é, ele escreveu um livro chamado: “Com Jesus na Contramão”. É bem isso mesmo! O plano de Deus tava todo do avesso, e eu vim para restaurá-lo.
– Como assim? Plano de Deus? Você é terrorista?
(Agora é a vez de Jesus soltar uma gargalhada)
– Esse é o discurso do atual império. Me admira que vocês ainda reproduzam o pensamento dos EUA. Quando eles combatiam os comunistas, eu era comunista. Agora que combatem os terroristas, sou terrorista.
– Perdão! Não queria ofendê-lo! É que...
– Não, não me ofendeu! O que me irrita é a propaganda difamatória, mas isso não é culpa sua; você apenas a reproduz.
– Bom, vamos falar de coisa boa. Arequêêêêêêêêê... Traz uma água pra nós!
(Sai o japonesinho correndo, mas Jesus continua respondendo à pergunta anterior, sem esperá-lo voltar)
– Como homem, eu não sabia que ia morrer numa cruz. Quero dizer, não foi um teatro. Não conduzi as coisas pra chegarem a esse ponto, como querem acreditar alguns pretensos teólogos por aí. Eu fui assassinado porque denunciei um esquema de corrupção.
– Corrupção? Pode nos dar nomes?
– Na verdade, é toda uma classe corrupta. Confira o que aconteceu em Mc 7,5-13; 11,15-18; 14,1-2.53-64.15,1-15.
– Não entendi muito bem, Jesus! Se o Sinédrio te condenou por se considerar Filho de Deus, por que os sacerdotes te apresentaram a Pilatos sob a acusação de se denominar Rei dos Judeus?
– Veja como esses senhores são artistas da enganação. A blasfêmia aos deuses dos povos dominados não significava nada para o imperador romano. Mas, lendo Jo 19,12-16, fica fácil entender que César não gostava muito da ideia de haver outros reis além dele.
(Johnson Ares bebe a água trazida por Arequê. Sente que deve interromper a entrevista, mas está inexplicavelmente curioso para saber o restante da História)
– Jesus, tô vendo aqui, na sua biografia escrita por Lucas, que os sacerdotes também te acusaram de subverter o povo, incitando-o a não pagar imposto a César (Lc 23,2). Fale um pouco mais sobre isso.
– É para que você veja a maldade das nossas lideranças políticas, John. Viviam reclamando do rigor com que o império nos oprimia, mas na frente de um oficial romano davam uma de quem estava a favor dos impostos. É como nos dias de hoje, onde um candidato, para se eleger, critica quem está no poder. Só que, uma vez eleito, o cidadão se torna ainda pior que seu antecessor.
– Mas você subvertia mesmo o povo?
(Dessa vez, um tom de preocupação na voz de Johnson Ares)
– John, eu te disse antes que eu vim para restaurar o Plano do meu Pai, que tava do avesso. Então eu te pergunto: quem é o subversivo nessa história?
– Interessante... Mas pode nos dar exemplos daquilo que você fazia que deixava os fariseus tão irritados?
– Pra começar, eu fiquei do lado dos considerados impuros: Prostitutas (Mt 21,31-32), pecadores (Mc 2,15), leprosos (Lc 17,11-19), hereges (Mc 7,24-30), endemoninhados (Mc 1,23-26), mulheres (Lc 8,1-3), crianças (Mt 19,13-15), doentes (Mc 1,32), enfim... O povo pobre em geral (Lc 6,20-26). Mostrei a eles que não eram os ritos que os salvariam, mas a prática do Amor (Jo 13,34-35; Mt 10,25-28) e da Justiça (Mt 5,6.10; 6,33).
– Por isso que você ensinava fora do Templo e da cidade?
– Na verdade, não tive muita escolha. Optar pelos pobres é viver à margem, nas periferias (Mc 1,40-45; Lc 4,29).
– E você se arrepende disso? Quer dizer... Não conheço muita gente disposta a fazer o que você fez.
– Aí é que você se engana, John! Tudo começou com quatro pescadores (Mc 16,20). Claro, depois ampliei para um número mais simbólico, nomeando os doze apóstolos (Mc 13,3-19), só pra lembrar do projeto das doze tribos.
– Doze tribos?
– Sim, as tribos que formaram o povo de Israel. Um projeto sem reis, baseado na partilha e na Justiça. Fazendo memória do projeto que nasceu lá no Êxodo, consegui fazê-los formar pequenos grupos, que persistem até hoje, de forma organizada, lutando por outro mundo possível.
– Grupos organizados? Perdão, mas quanto mais ouço, mais te vejo como um... Bem, escutei aqui o Jesus...
(A plateia faz um sonoro “aaaaaahhhhh...”)
– Sim, eu também gostei, mas vamos encerrando antes que...
Nisso, entra a polícia e dá voz de prisão a Jesus. Johnson Ares vai junto por deixar esse homem falar tanta besteira e por tanto tempo no ar. E assim termina a entrevista, mas não sem antes causar um reboliço no cenário internacional. O FBI quer explicações das atividades suspeitas desse que todos pensavam ter morrido. As relações entre o Brasil e o império norte-americano estremecem. Nossa presidente não tem outra alternativa, a não ser entregar o suposto terrorista à CIA. Se tudo correr bem, em poucos dias o caso será esquecido, a menos que Jesus ressuscite novamente, na luta do povo.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

QUEM TÁ NA RUA É PRA...

E o caldeirão, ou melhor, a panela de pressão popular está em ebulição. O movimento que começou com jovens estudantes (cabe aqui o reconhecimento, já que eles sempre são vistos como irresponsáveis ou desinteressados), devido ao aumento das passagens de ônibus, foi o estopim de uma série de protestos por todo o Brasil. Dizem que o gigante deitado em berço esplêndido finalmente acordou. Deve ser verdade, pois parece movimentar-se de modo bem desorientado, como quem acabou de sair da cama. Os gritos da rua são fortes, mas dispersos, cada manifestante expressando o sentimento que lhe convém, sem um tema comum que dê sentido aos protestos. Sobra vontade de lutar, falta um elo norteador.
 
 
O terreno é fértil para manipuladores. Grupos organizados, especialistas em manter a população sob controle, foram aos poucos se infiltrando, fazendo muito barulho e, aproveitando-se de um cenário real de injustiça e corrupção (existentes desde sempre, apesar da extrema-direita insistir que tenham sido inventadas pelo PT), tornaram gradualmente uníssono um desejo: “Fora, Dilma!” É a tentativa de reproduzir o movimento dos caras-pintadas, que culminou no impeachment do Collor. Lutam por tirar as bandeiras esquerdistas de cena, alegando que as manifestações devem ser apartidárias, mas fazem convenientemente o jogo da oposição ao Governo Federal. Isso é tão óbvio que chega a ser impressionante como a maioria dos participantes não percebe e entra no embalo.
 
 
Há dois meses, dois encontros de Bíblia e Juventudes – um em São Leopoldo, outro em Santana do Livramento – falavam também de um povo que clamava no deserto. Estávamos, ainda, sob os efeitos dolorosos da tragédia em Santa Maria. Líamos com grande expectativa o primeiro capítulo do Evangelho de Marcos. O povo indo atrás de João Batista, buscando o seu batismo como alternativa aos ritos purificantes (e excludentes) do Templo em Jerusalém. Jesus sendo batizado e recebendo sua missão no Rio Jordão. A formação do primeiro grupo de discípulos, a prisão de João e o início da missão de Cristo. É inevitável comparar aquelas reflexões ao que está acontecendo agora.

 
São Leopoldo, 6 e 7 de abril de 2013

 
Cada encontro tratou de um tema diferente. O de São Léo falou sobre Políticas Públicas para a Juventude. Em Livramento, onde os participantes estavam notavelmente mais sensibilizados com a tragédia da Boate Kiss, já que lá perderam parentes e amigos, o assunto foi o cuidado com a vida e a construção de relações solidárias. O pano de fundo em ambos, porém, era a violência e o extermínio de jovens. Por isso, percebendo que, conforme Mc 1,14, Jesus abraçara sua missão somente após a prisão de João Batista, perguntávamos: “Que Joões ainda precisam ser presos, isto é, o que falta acontecer para tomarmos uma atitude?” O questionamento foi um senhor chacoalhão para os participantes, que se sentiam acomodados. Entretanto, nem a previsão mais otimista daria conta de que, sessenta dias depois, o povo tomaria as ruas.

 
Santana do Livramento, 13 de abril de 2013

 
A coincidência dos fatos é tão grande que, certamente, muitos dos presentes aos encontros lançaram-se porta afora, certos de que o momento havia chegado. Porém, é preciso calma e muito discernimento para não sermos arrastados pelas primeiras impressões. Os mais atentos provavelmente se lembraram de duas coisas:
 
 
1º) Qual a missão de Jesus e de que fonte Ele a recebeu? Os versículos 11 e 12 de Marcos são retirados de Is 42,1, onde se lê: “Vejam o meu servo, (...) nele tenho o meu agrado. Eu coloquei sobre ele o meu espírito, para que promova o direito entre as nações”. Ora, o direito, segundo o mesmo Isaías, era fazer justiça aos pobres (órfãos, viúvas, estrangeiros etc.). Hoje, quem são os pobres e quem está a favor deles? Que dizem essas pessoas ou grupos sobre as manifestações? Eles tomam parte nisso? De que forma? Essa última questão nos remete ao segundo ponto, que é...
 
 
2º) De que maneira Jesus organizou sua revolução? As pessoas punham seus camelos na estrada e protestavam contra tudo e contra todos? Parece que não... Primeiro, o Nazareno anunciou a chegada de um novo tempo e exigiu mudança de atitude (v.15). Depois, formou grupos pequenos (vv. 16 a 20). Por fim, demonstrou que o espírito do grupo deveria ser de doação e serviço ao próximo (v. 21 em diante).
 
 
Por mais que as massas o procurassem – e Ele dedicasse algum tempo a atendê-las – Jesus sempre recusou a popularidade fácil (vv. 35 a 39). Ele sabia que multidão desordenada logo vira rebanho, ajuntamento sem capacidade de reflexão, guiado apenas pelo cajado de um pastor. Organizando seus seguidores em pequenos grupos (como os doze apóstolos, o círculo de mulheres, o núcleo de Betânia etc.), em apenas três anos, Cristo mudou definitivamente o mundo.
 
 
Pensando agora, sob esse novo olhar, será que fazem tanto sentido assim essas manifestações? Pelo que estamos lutando mesmo? O gigante acordou? Que gigante é esse? Será um monstro devorador de criancinhas? Em São Paulo, prefeito e governador disseram que baixaram as passagens, mas terão que subir outros impostos (PT e PSDB juntos... fim dos tempos?). Abasteci hoje meu carro e fui surpreendido com o aumento de R$ 0,20/litro da gasolina. Será que o gigante põe medo em nossas autoridades? Sabemos exatamente o que queremos? Estamos atingindo nossos objetivos assim? Haveria outra forma? O que isso exigiria de nós? Estamos dispostos?
 
 
O caminho é longo e não se resolve em alguns confrontos com a polícia militar. O lado bom é que, de uma hora para outra, todos se interessaram por assuntos como o funcionamento dos impostos, os royalties do pré-sal, a tal de PEC 37... Os movimentos sociais estão com a faca e o queijo na mão. Esta é a nossa melhor chance de mobilizar a nação. Vamos para as ruas, sim, mas de forma organizada. Lutemos para que o Brasil realmente seja de todas e de todos.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Enfim, Diplomado!

Colocando, finalmente, os pés no chão, volto a publicar neste espaço. Vivi uma experiência fantástica, minha formatura. Agora, sou graduado em Letras - Português. Entre tantos momentos maravilhosos, tive o prazer de ser o orador da turma. Eis o...

DISCURSO P/ FORMATURA DO CURSO DE LETRAS

Magnífico Sr. Reitor, aqui representado pela Sra. Diretora do Polo Novo Hamburgo, Tereza Dela Pace, professoras, colegas, familiares e demais aqui presentes, boa noite! Finalmente, é chegado o grande dia. Três anos, muitas provas e noites brigando contra o tempo, a conexão ou a plataforma congestionada (todo mundo deixando para postar na última hora), inúmeras idas e vindas a Novo Hamburgo e cinco gravidezes depois (é, senhoras e senhores, esse curso foi muito fértil, em todos os sentidos, mas, enfim...), aqui estamos nós.

Gostaria de poder dizer: “Tamo junto!” Porém, uma das primeiras coisas que aprendemos foram os níveis de linguagem. “Tamo junto” pode não estar errado, dentro do processo comunicativo, mas é inapropriado para o contexto. Por isso, em respeito a este ato solene, limito-me a dizer: “Como é bom partilhar este momento de intensa alegria com as senhoras e senhores, estimados colegas”. Entretanto, quando sairmos daqui e formos festejar com nossos parentes e amigos, poderemos dizer: “Que tri viver isso com vocês!”

Lembram-se, colegas, nosso primeiro dia de aula? Fizemos uma apresentação e externamos nossas expectativas. Uns diziam, quase chorando: “Não quero lecionar para os ‘maiorzinhos’.” Outros, ao contrário, preferiam não lidar com os anos iniciais. Um de nós, inclusive (este que vos fala), queria ser escritor. Como é bom relembrar isso agora. Será que mantivemos nossos ideais? Ou construímos novos planos? Seja como for, nós, que estamos vivenciando este momento, continuamos com uma meta. Estar aqui é cumprir a primeira etapa. Vamos relembrar o que aconteceu?

O curso foi bom, mas nos deu uma tremenda dor de cabeça. Há quem ainda trema ao simples pronunciamento da palavra “latim”. Umas e outros sofreram com o uso da crase e dos porquês. A linguística vai deixar alguns sem dormir direito por mais uns dias. E o novo acordo ortográfico? O trema se foi e não deixa saudade. Mas como saber, agora, o que se escreve junto ou separado? Vai hífen, não vai? Fora outras disciplinas. Eu, por exemplo, já deixei de orar, antes das refeições e de dormir, porque fico me perguntando: “Seria esta uma oração coordenada? Sindética ou assindética? Ou seria subordinada substantiva objetiva direta e/ou indireta?” Ah, como a vida era simples...

Não pensem, entretanto, que estou me queixando. Creio representar a turma quando digo que estamos realizando um sonho. A maioria, inclusive, já lecionava antes de iniciar o curso. Pensando bem, somos uns doidos. Só nós mesmos para pleitearmos a profissão de educadoras e educadores em um país onde a educação e a cultura não são valorizadas. Fazer o quê? Diz o ditado popular – e isso também é um saber: “o que é do gosto, é regalo da vida”.

Um ciclo termina, outro se inicia. O canudo é uma conquista mas também uma responsabilidade. Ao sair daqui, teremos a missão de levar o saber a nossos alunos. Aliás, desculpem-me... ato falho! Já se foi o tempo em que os alunos (do latim: os “sem luz”) deveriam recorrer ao mestre, detentor da sabedoria. Ouso dizer que a graduação em Letras nos trouxe uma grande e boa notícia: um novo conceito está surgindo. Educadores não portam luz; geram conhecimento. Quem se apropriar dessa novidade, sobreviverá aos desafios de lecionar no terceiro milênio.

Isso não quer dizer que o professor deve deixar de ensinar. Pelo contrário. O educador deve reaprender a lecionar, preocupado com o que o educando aprende, não só para passar de ano, mas para a vida. E o professor de Letras deve, sim, ensinar a ler. Mas, junto com as palavras, o educando precisa aprender a ler o mundo, a vida, a sociedade em que vive. Esse não é só o papel da Literatura, mas de qualquer conteúdo programático de um bom professor, uma boa professora de Língua Portuguesa. Que me perdoem os desafetos de Paulo Freire, mas não posso deixar de citá-lo: “Não basta ler mecanicamente ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”.

Bom, colegas, não quero assustá-los. Hoje é dia de festa. Sei que todos estão cientes do que nos aguarda. Semana passada, houve um concurso do Estado para o Magistério. Espero, sinceramente, que continuemos juntos, dessa vez como profissionais. Festa hoje, festa sempre. Festa não é sinônimo de irresponsabilidade, mas de alegria. Lecionar deve ser um ato de extrema alegria, senão vamos continuar contribuindo para o descaso cultural e sistêmico com a educação. Só nós podemos mudar o mundo. E faremos isso mudando as pessoas, a começar por nós mesmos. Desejo, às senhoras e senhores, sucesso!

Por fim, peço que todos baixem suas cabeças, pois faremos uma oração... coordenada assindética aditiva: “Vim, vi, venci!” Muito obrigado!

Ulbra – Canoas, 25 de maio de 2013.

domingo, 7 de abril de 2013

PÁSCOA: PACTO PELA VIDA


Não é de hoje que a Tradição, servindo à ideologia dominante, busca relativizar a dimensão sociopolítica do Evangelho. Nesta época de Páscoa, em especial, onde a liturgia atinge o seu ápice, beiram a heresia os esforços para negar o teor subversivo da mensagem de Cristo. As celebrações são pietistas, e as relações, intimistas. O individualismo e a falta de compromisso ditam as regras. Mas será esta a celebração que Deus quer?

A Páscoa, do hebraico Pessach (= passagem), é uma festa “emprestada” da cultura de alguns dos grupos fundadores das tribos de Israel. Sua origem pode estar entre os pastores semi-nômades, que imolavam um cordeiro e usavam o sangue para marcar os pórticos de entrada e saída do antigo acampamento, acreditando assim aprisionarem os maus espíritos para que não os seguissem na busca por novos pastos. Ou pode ter nascido entre os camponeses cananeus, que também possuíam um rito de passagem. Na festa da colheita, trocavam a farinha velha por uma nova. O fermento, porém, era um pedaço da antiga. Antes de “contaminar” a massa nova, comiam-se os pães ázimos (não levedados), celebrando-se assim a renovação da vida. Tempos depois, recontando a história da fuga dos hebreus, os autores bíblicos adicionaram e fundiram as duas tradições, indicando que a saga do Êxodo era a grande passagem da escravidão para a liberdade. Diante disso, não é à toa que os evangelhos apontem essa data para a ressurreição de Cristo. Assim, querem dizer que a Morte não tem a palavra definitiva, mas é só a passagem para uma nova vida, ou melhor, para a Vida, sempre nova e eterna. Seja como for, independente de cultura ou religião, a ideia é de movimento, ação, mudança.

Este é justamente o problema da Tradição: mudar vai contra o seu princípio fundamental, que é o de manter tudo do jeito como está. Mudanças são perigosas, principalmente para quem está no poder. E o que é melhor para tornar inofensivo um movimento revolucionário do que distorcê-lo? Por exemplo, dentre os ensinamentos do “lava-pés”, escolhe-se exaltar a humildade de Cristo. Ora, eis aí um termo ambíguo. É possível ser humilde e continuar explorando os outros. Tem muito empresário que anda de sandália, mas é rico às custas do trabalho de seus operários (que não usam sandálias por opção, mas pela necessidade). E o que dizer do tradicionalíssimo “Deus morreu por ti, no teu lugar”? Quem não se consumir pela culpa (por exemplo, canta-se na via-sacra: “A morrer crucificado, teu Jesus é condenado, por teus crimes[?], pecador...”) pode chegar ao outro extremo, que é o de não se comprometer com nada. Afinal, o que resta fazer quando o próprio Deus já expiou definitivamente nossos pecados numa cruz? Seja como for, as coisas ficam sempre no campo do individualismo e da subjetividade, que é a melhor maneira de impedir qualquer alteração da realidade.

Como romper com este ciclo, isto é, como realizar a passagem de uma vida alienada para um pacto de compromisso com a Vida? Penso que o primeiro passo é buscar entender os gestos de Jesus. A atitude de lavar os pés, segundo Ele mesmo explicou (Jo 13,12-17), é sinal de que o cristão deve estar a serviço. É possível ser humilde e individualista ao mesmo tempo, mas não dá pra servir a si mesmo. Um outro se faz necessário nessa relação, do qual devemos cuidar. Sim, mas... e aquela “cláusula” que nos impede de agir (= Jesus morreu por nós...)? Paulo diz que: “livres do pecado, vos tornastes servos da JUSTIÇA(Rm 6,18). A carta de Pedro vai no mesmo sentido: “Sobre o madeiro, (Jesus) levou os nossos pecados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos para os nossos pecados, vivêssemos para a JUSTIÇA (1Pd 2,24). Vários outros textos nos remetem ao compromisso de, redimidos pela cruz, buscarmos o direito dos pobres (órfãos, viúvas, doentes...). Segundo o profeta Isaías (cf. Is 1,17; 58,6-8), isto é buscar a Justiça. Só mesmo uma leitura de conveniência para ignorar essa importante premissa, complementar à velha máxima de que Cristo morreu em nosso lugar. Portanto, resumindo, nossa missão é servir à próxima, ao próximo, buscando a Justiça e o Direito. Esse, no fim das contas, é o real significado da Páscoa.

Por isso, quando formos celebrar a festa maior das cristãs e dos cristãos, devemos saber em que implica, necessariamente, desejar uma boa Páscoa. Convido você a tornar clara sua mensagem. Se pactuar com o que vai escrito por estas linhas, externe às pessoas o que realmente deseja quando lhes diz “Feliz Páscoa”. A vizinha pode entender isso como uma saudação cordial, aquilo que se deve dizer nessas ocasiões, algo sem outro sentido além de cumprir um rito social. Seu sobrinho pode achar que você deseja vê-lo ganhar muito chocolate. A pessoa amada pode estar pensando que você quer celebrar essa data ao lado dela por muitos anos. Bom, “Feliz Páscoa” pode ser isso também. Mas não pode deixar de ser passagem. Um tempo de mudança, de conversão. Um tempo de repensar nossas relações e o que temos feito uns pelos outros. Só assim nossas saudações, trocas de presentes e festas com direito a macarronada na casa da “nonna” farão sentido.

terça-feira, 12 de março de 2013

Roteiro Bíblia e Juventudes: Saindo do Anonimato



O roteiro a seguir foi utilizado numa oficina da PJ-ICAR, mas poderá ser utilizado por grupos de jovens de todas as denominações.


Seminário de abertura dos 40 anos da PJ
São Leopoldo/RS – 09 e 10 de março de 2013

OFICINA DE BÍBLIA E JUVENTUDES
(ASSESSOR: José Luiz Possato Jr.)

PERGUNTA: Como se faz uma Leitura Popular e Juvenil da Bíblia?

Exercício => Ler Ex 18,1-12 - 1 Jetro, sacerdote de Madiã e sogro de Moisés, ficou sabendo de tudo o que Javé havia feito com Moisés e com seu povo Israel: como Javé havia retirado Israel do Egito. 2 Quando Moisés mandou sua mulher Séfora de volta, Jetro, sogro de Moisés, recebeu-a 3 junto com os dois filhos. Um deles se chamava Gérson, porque Moisés dissera: “Sou imigrante em terra estrangeira”. 4 O outro se chamava Eliezer, porque: “o Deus de meu pai é minha ajuda e libertou da espada do Faraó”. 5 Acompanhado da mulher e filhos de Moisés, Jetro foi encontrar-se com ele no deserto onde estava acampado, junto à montanha de Deus. 6 Informaram a Moisés: “Sua mulher e seus dois filhos estão aí juntamente com seu sogro Jetro”. 7 Moisés saiu para receber o sogro, inclinou-se diante dele e o abraçou. Os dois se cumprimentaram e entraram na tenda. 8 Moisés contou ao sogro tudo o que Javé tinha feito ao Faraó e aos egípcios, por causa dos israelitas. Contou também as dificuldades que tinham enfrentado pelo caminho e das quais Javé os havia libertado. 9 Jetro ficou alegre por todos os benefícios que Javé tinha feito a Israel, libertando-o do poder egípcio. 10 E disse: “Seja bendito Javé, que libertou vocês do poder dos egípcios e do Faraó. Ele arrancou este povo do poder do Egito. 11 Agora eu sei que Javé é o maior de todos os deuses, pois quando eles tratavam vocês com arrogância, Javé libertou o povo do domínio egípcio”. 12 Depois, Jetro, sogro de Moisés, ofereceu a Deus um holocausto e sacrifícios. Aarão e todos os anciãos de Israel foram e fizeram a refeição com ele na presença de Deus. (versão Ed. Pastoral online)

Questões:
1)   Que personagens aparecem no texto?
2)   Quem são os protagonistas? Algum/a deles é jovem?
3)   No v.6, quem é anunciado primeiro a Moisés?
4)   Quem entra com Moisés na tenda? O que fazem lá dentro?
5)   O que acontece com Séfora e os filhos no fim da história?
6)   Em que momento/s a juventude é deixada do lado de fora da tenda, isto é, fica excluída do núcleo de tomada de decisões?
7)   Quando Jesus é questionado por uma estrangeira (Mt 15,21-28), a postura decidida da mulher faz com que ela seja notada, isto é, saia da marginalidade. Que outros trechos podem ser citados nesse sentido?
8)   Como esses textos nos ajudam no processo de empoderamento juvenil?

Mateus 15,21-28 - 21 Jesus saiu daí e foi para a região de Tiro e Sidônia. 22 Nisso, uma mulher cananeia, que morava nessa região, gritou para Jesus: “Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim. Minha filha está sendo cruelmente atormentada por um demônio.” 23 Mas Jesus nem lhe deu resposta. Então os discípulos se aproximaram e pediram: “Manda embora essa mulher porque ela vem gritando atrás de nós.” 24 Jesus respondeu: “Eu fui mandado somente para as ovelhas perdidas do povo de Israel.” 25 Mas a mulher, aproximando-se, ajoelhou-se diante de Jesus e começou a implorar: “Senhor, ajuda-me.” 26 Jesus lhe disse: “Não está certo tirar o pão dos filhos e jogá-lo aos cachorrinhos.” 27 A mulher disse: “Sim, senhor, é verdade; mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos.” 28 Diante disso, Jesus lhe disse: “Mulher, é grande a sua fé! Seja feito como você quer.” E, desde esse momento, a filha dela ficou curada.

Ajudando a reflexão:
A reunião de um grupo de homens numa tenda, com o intuito de fazer memória da intervenção divina e honrá-la por meio de rituais e sacrifícios, indica-nos com toda certeza que este é um texto de tradição sacerdotal. Portanto, trata-se de um escrito do pós-Exílio, onde o poder interno, tanto político quanto religioso, está centrado no Templo de Jerusalém. O domínio econômico e militar é exercido por um imperador estrangeiro, não necessariamente o Faraó egípcio, mas certamente um opressor indesejado. Nesse momento crítico, a memória do Êxodo ajuda a animar a caminhada.
Porém, na luta por libertação, de alguma forma, há sempre o risco de se reproduzir os mecanismos da opressão. Assim, as mulheres e crianças (e podemos incluir aí os jovens), mesmo que insistam em se fazer presentes (depois de Moisés ter despachado Séfora e os filhos para a casa do sogro, ela bate novamente à “porta” de sua tenda), são impedidos de participar das decisões.
Essa dominação histórica atravessa os séculos até chegar aos tempos de Jesus e encontrar uma mulher cananeia que questiona a estrutura e, com isso, muda a crença e a trajetória do próprio Cristo. O texto de Mateus, escrito para judeus da diáspora provavelmente, mostra o momento exato em que o Evangelho se abre aos não-judeus, usando nada mais simbólico do que uma mulher estrangeira, ou seja, uma personagem duplamente excluída pela sociedade judaica da época.
Chama atenção a postura dos discípulos: “Manda embora essa mulher porque ela vem gritando atrás de nós” (v.23b). Lendo as entrelinhas, é possível entender o seguinte: “Manda essa mulher embora porque a gritaria é grande e já desperta os olhares dos demais. Mulher, criança e jovem têm que saber se pôr no seu devido lugar. Que palhaçada é essa de ficar fazendo reivindicações? Já pensou se a moda pega?” São tão próximos de Jesus que sofrem a tentação de querê-lo só pra si. Não entendem que a Boa nova é para todos os povos.
O próprio Jesus entende que a preferência é dos israelitas. Compara a mulher a um cachorrinho, digno apenas do que “cai da mesa”. Porém, a reação dela o desarma completamente. Em vez de protestar, ela procura demonstrar que nem o direito às migalhas está sendo respeitado. Derrotado, não resta outra coisa além de atender ao pedido.
É interessante, ainda, notar o movimento de aproximação da mulher. Ela começa a narrativa gritando. Ou seja, está tão longe (ou abafada?) que não é fácil escutá-la. Porém, a insistência é tanta que começa a incomodar. Já não sendo possível ignorá-la, nada mais impede que ela se coloque de joelhos aos pés de Jesus. O desfecho é lindo, digno de um retrato. Mas um quadro imóvel não faria jus ao que realmente está em jogo nesta cena: quando os espaços não são dados; devem ser conquistados.
Hoje, olhando a realidade de nossas jovens e nossos jovens, urge perguntar: Quais são os seus espaços? A quais elas e eles têm direito? Estão sendo respeitados? O jovem participa das decisões políticas do nosso país? O que é preciso fazer para sair da invisibilidade? Buscar respostas para estas questões – e outras a elas relacionadas – é fundamental para definirmos o norte da nossa caminhada.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

TRAGÉDIA EM SANTA MARIA: HORA DA PROFECIA

Santa Maria/RS, 27 de janeiro de 2013. Ninguém irá se esquecer dessa data tão cedo! Quer dizer... é o que se espera! Mais de 230 mortes desnecessárias e perfeitamente evitáveis. Mas... por que aconteceram?

Sabem que, apesar de comovido, eu não havia pensado no assunto a fundo ainda. Mas hoje, vendo minha esposa chorar, percebi o quanto somos acomodados e alienados. Em seu desabafo, pura denúncia profética: “Todo mundo crucificando o gurizinho (sim, ele também é um jovenzinho) que iniciou o incêndio, mas ninguém fica revoltado com o funcionário público preguiçoso ou corrupto (e, aqui, não estamos falando de todos, mas de uma parcela que, de fato, o é) que faz vistas grossas para o alvará vencido, ou assina uma licença sem saber o que, de fato, está assinando! Ninguém se lembra do bombeiro que não interditou um lugar sem as mínimas condições de segurança! Cambada de hipócrita! São muito mais culpados do que os músicos, que, no fim das contas, queriam só divertir a turma”.

Ouvi tudo calado. Não chorei, mas devo ter corado de vergonha. Até então, tudo o que eu tinha lido/ouvido a respeito se limitava a cartinhas de solidariedade, reflexões sobre o que a morte e a dor teriam a nos ensinar, além de análises muito supérfluas, sempre buscando culpados entre os que estavam na boate naquela noite. O que mais me irritou foi um texto falando que Deus quis fazer uma festa(?) no Céu e, por isso, levou a gurizada, deixando-nos na saudade. Ora, a quem poderia servir esse tipo de pensamento? Foi Vontade de Deus, então!? Mas que bando de covardes somos nós! Enquanto culpamos Deus, os verdadeiros responsáveis continuam decidindo nossas vidas.

Meu Deus, que ótima oportunidade de sermos profetas de verdade! Ok, as cartinhas de solidariedade são legais, demonstram nosso interesse (ou o tamanho dele, pelo menos)... Mas cadê a coragem de denunciar todo um sistema responsável pelo extermínio de jovens? Esses morreram asfixiados ou queimados, mas quantos morrem lentamente, com “pílulas coloridas” amplamente distribuídas nas raves? Quantos morrem lentamente, todos os dias, embaixo de um viaduto, aparentemente invisíveis? Esses mesmos, que morreram em Santa Maria, teriam sido vítimas de um suborninho aqui, uma propininha ali, essas coisas que “agilizam” a liberação das atividades de um estabelecimento? Cadê a coragem profética de denunciar essas práticas que só visam o lucro? E não estou falando dos seguranças, que fecharam as portas com medo da gurizada sair sem pagar o ingresso. Mais gananciosos são os membros do cartel do entretenimento, para os quais não importam as pessoas, mas o que elas estão dispostas a pagar por diversão. Esses criam necessidades, determinam o que realmente é divertido, não nos dando a chance de decidirmos o que realmente queremos. Mais uma vez... são outros os que decidem por nós. Até quando?

Não chora, meu amor! Ou melhor, se vai chorar, saiba que estou aqui, solidário ao seu sofrimento. Agradeço por abrir meus olhos. Se ninguém mais quiser denunciar as maldades dessa sociedade corrupta e hipócrita, falemos nós! Um dia, alguém nos escutará!