sábado, 31 de março de 2012

Por Missões (realmente) Populares


Estamos às portas de mais um grande evento de massa da ICAR: as Missões Populares. Para algumas pessoas, é o momento de conquistar almas para Cristo. Já, outras acreditam em uma grande cruzada contra o avanço dos heréticos evangélicos. Mas há quem deseje, do fundo do coração, que essas missões sejam populares de fato. Para essas pessoas, é momento de ir ao encontro das irmãs e irmãos, independente de sua profissão de fé.

O discurso oficial da Igreja fala em conhecimento das diversas realidades. Desculpem o meu ceticismo, mas isso cheira a censo. Primeiro, porque a ICAR se organiza, ainda, de forma territorial. Ou seja, os limites geográficos de uma determinada região fazem parte de (leia-se: “pertencem a”?) uma certa comunidade/paróquia. Segundo, porque esse é o mesmo discurso do governo para justificar a atuação do IBGE. E sabemos (não sabemos?) que essas pesquisas têm a finalidade de mapear a população para, depois, entre outras coisas, cobrar impostos.

A Bíblia diz que o censo é pecado. Mas ela não se limita à pura e simples constatação. Sua preocupação é denunciar o mal por trás da ação. Em 2Sm 24, a crítica a Davi é velada e faz com que o próprio Javé incite o rei contra o povo (v. 1), fazendo-o arrepender-se depois (v. 10). Mas Salomão não é poupado. Em 2Cr 2,16-17, diz-se abertamente que foram contados os homens disponíveis para a guerra e a corveia (trabalho forçado para o rei). Logo, o censo deveria ser uma vergonha para nós, cristãs e cristãos.

Quanto às cruzadas, basta-nos a História. Há quem ainda defenda as “boas intenções” da Igreja. Mas qualquer uma, qualquer uma que tenha o mínimo conhecimento dos Evangelhos sabe que a Boa nova de Jesus não estava na ponta de uma espada. Aliás, quando um de seus discípulos resolveu utilizar esse recurso, Jesus o repreendeu: “Quem usa da espada, pela espada morrerá” (Mt 26,52). Óbvio que não veremos espadas nas missões-cruzadas, mas o princípio ainda é o mesmo: destruir o oponente.

Se querem ser populares, então que as missões estejam mais de acordo com a Bíblia na ótica do pobre. Mostrar um Deus cujo único objetivo é se dar a conhecer parece atitude de quem quer impor sua religião, sua verdade. Javé quer mais! Ele se interessa, conhece a realidade de seu povo (Ex 3,7) e desce para libertá-lo (Ex 3,8 – entenda-se: “vai ao seu encontro”, “caminha com ele”). No Primeiro Testamento, envia Moisés e os profetas. No Segundo, Ele mesmo encarna a condição humana na Pessoa de Jesus. O chamado, isto é, a Missão não é privilégio, não busca benefício próprio; antes, é a resposta divina ao clamor de um povo.

Tal resposta não se dá de cima para baixo. Ir ao encontro não é sinal de superioridade, mas igualdade. Ao ser questionado por um especialista em leis sobre quem era o seu próximo, Jesus contou a história do homem assaltado e resgatado por um samaritano (Lc 10,25-37). Ao final, Ele inverteu a pergunta: “Quem foi o próximo da vítima?” O escriba não conseguia dizer “samaritano” (havia, de fato, uma rixa entre estes e os judeus), mas reconheceu que era aquele que havia praticado misericórdia (v.37). O superior escolhe quem deve se aproximar dele, mas Cristo nos envia a sermos as próximas, a estarmos próximos de quem realmente necessita, independente de religião, cor, sexo, idade ou condição social.

E quem necessita de nós? De quem estamos mais próximos? Nas missões populares, iremos às casas de nossos vizinhos. Alguns seguidores de João Batista, quando convidados a seguir Jesus, quiseram saber onde Ele morava (Jo 1,38). Exigência boba? Não! Prudência! Seguir um sonhador, que não vive a realidade concreta de sua própria casa, é loucura. Jesus se mostrou uma pessoa concreta, que vivia em uma casa concreta e passava o dia-a-dia no meio do povo. Com certeza, Ele se interessava pela vida de seus vizinhos (de forma positiva, construtiva, é claro), e isso bastou para que os discípulos de João acreditassem n’Ele e o seguissem (v.39).

E, já que a ideia não é converter as pessoas, o que devemos fazer nas casas? Bom, quem disse que a intenção não é converter? O problema é que nós pensamos, hoje, o processo de conversão como uma adesão de fé. Ora, é isso também... Mas não é isso! Aliás, essa deve ser a nossa última preocupação. Quando enviou seus discípulos, dois a dois (Lc 10,1-12), Jesus  recomendou que levassem somente o necessário, anunciassem a paz, permanecessem nas casas, comessem, bebessem, curassem os doentes e anunciassem que o Reino está próximo. Pelo que vemos, não disse nada sobre adesões ao cristianismo. Então, que raio de conversão é essa? É a conversão dos costumes, dos gestos, de uma cultura enfim.

Mudar uma cultura não é fácil. Quando os discípulos pediram que Jesus despedisse a multidão faminta, Ele os repreendeu: “Alimentem vocês mesmos o povo” (Mc 6,35-37a). E eles ficaram bravos: “Como conseguiremos fazer isso sozinhos?” (v.37b – interpretação livre). Jesus, então, ensinou o grande segredo: “Não façam pelo povo; façam com o povo. Organizem-nos. Façam-nos sentar (entenda-se: “que estejam em condições de igualdade”), formando grupos de 50 e de 100 (isto é, grupos pequenos). Que cada grupo tenha autonomia, mas que ajam em rede, conectados, em verdadeira comunhão.” (vv. 38-44 – novamente, versão livre). Moisés já havia tentado isso, quando nomeou os juízes (Ex 18,13-27). Mas esse projeto igualitário foi suplantado pela instituição da monarquia (1Sm 8). 300 anos depois da morte de Jesus, o cristianismo também ficou submisso ao poder do império romano. O projeto de vida em abundância para todas e para todos (Jo 10,10) é a utopia, a realização plena do Reino, o projeto sonhado por Deus, mas o caminho para chegar até lá depende de nós – e é longo, árduo e perigoso.

Mas não devemos desanimar. As missões populares, portanto, devem ser o grande momento de reunir o povo, ser fermento na massa. Isto é, que entendamos o ser missionária, ser missionário como ser agentes de transformação, ajudando o povo a ser organizar em busca da terra prometida, ou seja, da realização da vida plena, o grande sonho de Deus.

Um comentário:

  1. Muito boa reflexão, Zé!
    É triste quando vemos as pessoas se preocupando, discutindo e se dedicando a assuntos periféricos e deixando a fonte, o eixo de lado, sem contemplá-lo, ouvi-lo e segui-lo...
    Abração

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