quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ester e a Marcha contra a Violência

Foi com muita satisfação que recebi, faz alguns dias, um convite para, em nome do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), participar do encontro regional de avaliação e planejamento da campanha contra a violência e extermínio de jovens. Contextualizando, é uma iniciativa nacional das PJs (Pastorais da Juventude) da ICAR (Igreja Católica Romana). No fim das contas, é o reconhecimento de um trabalho, pois tenho me empenhado muito para disseminar uma Cultura de Paz nos cursos trabalhados Rio Grande do Sul afora.

Essa campanha tem agitado a ala jovem política e socialmente engajada da Igreja. Trata-se de protagonismo legitimamente juvenil. O assassinato do Pe. Gisley, assessor nacional do Setor Juventude, alavancou-a ainda mais, fazendo com que ganhasse notoriedade dentro e fora das instâncias religiosas. Graças à propaganda alternativa (leia-se: “mídias digitais”), o seu cartaz de divulgação já apareceu até no horário nobre das novelas brasileiras. Porém, o movimento, que iniciou como uma marcha, precisa avançar ainda mais. Por isso, vejo com bons olhos esses momentos de parada e reflexão.

Como real interessado em hermenêuticas juvenis, chamo especial atenção para o referencial bíblico. De fato, é um texto emblemático: “O meu desejo é a vida do meu povo” (Est 7,3). Que forte! Bela frase de efeito... Visto fora de seu contexto (ou até mesmo por “meias” contextualizações) é fantástico! Ainda mais vindo da boca de uma jovem. Aparentemente, um belo exercício de protagonismo juvenil. Porém...

Estudando um pouco mais atentamente o livro de Ester, perceberemos o quanto é ilusório o poder da personagem principal. Com sua beleza, ela seduz o rei Assuero. Mas sua participação termina aí. Quem decide a estratégia, o “como fazer”, o modo e o momento certo de interceder pelo povo é seu primo, Mardoqueu. Ele é a mente pensante por trás do audacioso plano. Só não o executa por não ter tantos “dotes” quanto sua prima (sobre o parentesco das personagens, cf. Est 2,7a).

Os autores do livro, escrito à época do domínio persa (isto é, pós-Exílio na Babilônia), parecem demonstrar certa simpatia pelo império. De fato, uma parte do povo (casualmente a parcela cujos pais exilados haviam sido grandes proprietários de terra em Israel) reverenciava o rei Ciro como enviado de Javé (2Cr 36,22-23; Is 45,1.13). O Templo foi reconstruído com a condição de que se rezasse também pelo rei (Esd 6,10). Ter colocado o nome das divindades babilônias nas personagens principais (Ester vem de Ishtar; Mardoqueu, de Marduc) só corrobora com essa suspeita. É como se hoje eles se chamassem Dolar-eu e Hollywoodina.

Justiça seja feita, o texto procura demonstrar que postura se deve tomar diante de um líder tão forte e violento quanto Assuero (Xerxes I, filho e sucessor do rei Dario). O profeta Jeremias já havia dado essa dica: “Procurai a paz da cidade para onde eu vos deportei” (Jr 29,7). O livro, de fato, parece ser um “manual” para os judeus da diáspora (isto é, dispersos por outras regiões do império que não Israel). Aceita submissamente a escravidão (Est 7,4 – apenas um versículo após o referencial da campanha). Anima o povo a conviver com seus vizinhos, mas guardar a lei e os preceitos judaicos. Instiga a esperança numa reviravolta que traga novamente os tempos de glória do império israelense (Mardoqueu torna-se o segundo em comando [Est 8,1-2], de forma similar a José do Egito [Gn 41,39-40]), com direito a vingar-se dos inimigos (Est 8,10-11).

A narrativa é ótima para tempos de perseguição brutal. Mas cá entre nós... cuidado para não comprarmos o livro todo só pela capa, isto é, por um versículo. Lendo atentamente o capítulo 4, perceberemos que Ester não tinha lá muita intenção, a princípio, de salvar o seu povo. Foi preciso um “forte argumento” de seu primo Mardoqueu para que ela se mexesse. Outra coisa... a vingança não é lá uma atitude muito propícia à superação da violência. De que maneira podemos ler o novo edito do rei, dando aos judeus o mesmo direito de matar que antes fora determinado contra eles? Este é o real perigo de “pinçar” jovens na Bíblia, em vez de fazer uma leitura juvenil das Escrituras. Para justificar nossas escolhas, vemo-nos forçados a pintá-los como heróis, ou então pintar os verdadeiros heróis e heroínas como jovens.

O que podemos tirar de positivo do livro de Ester é que o império persa não era, no fim das contas, tão bom quanto se dizia. Trouxe sim a liberdade de expressão religiosa aos povos dominados. Permitiu-lhes, também, voltar à sua terra de origem. Mas tudo era apenas parte de um plano, uma nova forma de dominar. Não temos hoje também a ilusão de um tempo bom, enquanto Mariazinhas e Joõezinhos continuam tombando em berço esplêndido?

Outra coisa... o grupo de Ester e Mardoqueu organiza sua resistência infiltrando-se nas esferas do poder. Esse me parece o papel das/os jovens no CONJUVE, não!? Existem outros espaços que já estamos galgando, ou que ainda podemos conquistar? Que forças nos impedem de termos participação mais efetiva nas decisões da sociedade? Podemos dizer que exercemos, de fato, um genuíno protagonismo juvenil, ou ainda dependemos da autoridade adulta para “legitimar” nossas ideias? Essa pergunta serve também para o âmbito eclesial. Estamos, ainda, na dependência de um apoio clerical (leia-se: “de um padre”) para sermos ouvidos, ou somos respeitados “apesar” de nossa condição juvenil?

Essas são apenas algumas questões que me vêm à cabeça sem precisar recorrer a personagens jovens na Bíblia. Outras perguntas podem ser feitas (e espero que sejam). O livro de Ester não tem resposta para todas. Mas pode muito bem nos colocar a caminho. Creio que, indo por esse viés, aí sim teremos escolhido uma ótima iluminação bíblica para a nossa marcha.

2 comentários:

  1. Legal Possato jr.
    Achei importante comentário sobre o "pinçar" figuras jovens dos textos.

    Abç.

    Ariel ( PJ, CEBI-MS)

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  2. Confesso que estou muito longe de ser um bom conhecedor da Bíblia, mas a sua reflexão é de fato muito diferente das várias reflexões que já ouvi sobre essa passagem, inclusive na última Ampliada Nacional - em que estive "xeretando" hehehe, e onde a reflexão que fizeram, em minha opinião, reduziu-se muito à passagem em si e não "dialogou" com o conjunto do livro.

    Parabéns, companheiro! Continue nos oferecendo suas reflexões bíblicas.

    Um abraço,

    Joilson.
    São Luís/MA

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